Este texto tenta analisar as dificuldades que a mágica deve enfrentar em tempos onde a maioria dos artistas deve ter um trabalho minimamente sólido nas redes sociais. Mas precisamos antes analisar um pouco do funcionamento e dos elementos intrínsecos à mágica.
Segundo Ricardo Harada a composição da arte mágica se dá em três instâncias
“paralelas, indissociáveis e, ao mesmo tempo, distintas. A primeira dimensão é relativa ao percebido ou aquilo que o espectador lê, interpreta e absorve; a segunda dimensão diz respeito ao não percebido, ou seja, todas as causas imperceptíveis à testemunha do fenômeno; por último, a recriação do acontecimento mágico na memória do espectador. Em outras palavras, a mágica se divide em três universos: o visível, o invisível e a reminiscência”¹
O universo do invisível e as técnicas de vídeo se aliam desde Georges Méliès, cujas técnicas de mágica foram usadas com intuito de fazer um produto audiovisual inovador e único. Mas é importante olhar tudo como produto de seu tempo e na época os efeitos especiais ainda não existiam super difundidos como hoje, o que trazia outro tipo de leitura. Precisamos lembrar também que normalmente os vídeos eram vistos em exibições, pois os aparelhos que os reproduziam não eram amplamente difundidos. Hoje a coisa é bem diferente e estamos falando de vídeos nos quais as pessoas assistem em casa e tem total controle sobre eles. Armando Lucero, em seu DVD Papercuts, diz no primeiro volume durante a explicação do efeito The Ascension, que não tem muitas performances filmadas porque mágica é para ser vista ao vivo. Em seguida faz um exercício pedindo para imaginarmos em uma apresentação o espectador controlando a performance com comandos do tipo “para um pouco, agora volta, faz novamente devagar” exatamente como se pode fazer em um vídeo na internet; ainda mais hoje que é facilitado mudar a velocidade do vídeo.
Não defendo que a postura conservadora de Armando Lucero deva ser tomada à risca, mas é preciso levá-la em consideração. Voltando para a teoria do Harada e a unindo com o pensamento de Armando, é possível enxergar a prejudicialidade que ver o vídeo mais de uma vez pode ter na reminiscência. Se a maneira como o efeito fica gravado na mente de quem vê é parte do significante que gera o significado da mágica, criando um efeito maior que o instantâneo do momento em que é visto, o vídeo naturalmente prejudica isso, ainda mais esses formatos como tiktok, reels e shorts, onde um curto período de tempo é visto repetidamente. Ou seja, a mágica não foi feita para ser assistida por vídeo. Talvez isso explique o número alto de demonstrações no instagram e outras plataformas nas quais uma pessoa apresenta um número de mágica com um ponto de vista no qual quem vê o vídeo, também vê o segredo, quer dizer, na impossibilidade de entreter completamente – e na busca por seguidores e likes – mostra-se, ao menos em tese, parte de sua poiésis: o invisível. Mas a questão aqui não são os vídeos que revelam, pois os que não o fazem também são prejudicados, já que o significante da mágica torna-se incompleto sem a garantia da reminiscência, além disso a condição do ao vivo permite muito mais técnicas que atuam na sensação do espectador e contribuem para um efeito mais forte em sua memória.
A pandemia causou uma enorme reinvenção da categoria de mágica por vídeo, mas a maior parte delas foram ao vivo e online. Efeitos interativos onde espectadores fazem todo o processo da mágica não é novidade, mas a necessidade definitivamente ressuscitou esse estilo e o evoluiu em alguns pontos. Mas o vídeo ao vivo e não ao vivo são coisas diferentes.
Essas problemáticas devem ser levadas em consideração hoje, inclusive nas performances ao vivo. É necessário sempre ter a consciência da incompletude das performances filmadas. Isso acarreta outro problema do qual é difícil ter a dimensão: o primeiro acesso à mágica da maioria das pessoas se dá via vídeo na internet, quais os impactos que isso acarreta? Como falei dois artigos atrás do Mister M resultar em uma má primeira leitura da mágica que muitos brasileiros tiveram, agora, inevitavelmente, temos o mundo todo tendo acesso à mágica pela internet e normalmente sendo revelada de forma banal. Portanto, o acesso é dado por meio de um significante incompleto que raramente gera o encantamento e assombro necessários para levar dali para o teatro ou algum lugar com intervenções de mágica, mas isso é uma problemática com a qual temos de lidar. O passo número um é ter consciência do desafio, pois a mágica por vídeo impacta a leitura da mágica ao vivo, assim o que supostamente seria uma boa estratégia de divulgação acaba se tornando a banalização da completude do significante da mágica.
Um bom exemplo disso é a nova categoria de mágica online do FISM – competição mais importante de mágica do mundo – que está acontecendo toda via instagram com os vídeos já disponíveis². É inegável que trata-se de uma inovação e democratização da competição, já que a edição ao vivo deste ano acontecerá na Itália em julho e não é necessário viajar para competir. Mas basta uma olhada rápida no feed oficial onde os vídeos são postados que vemos de cara que o nível não é o mesmo. Naturalmente que a categoria é nova e ainda precisa de ajustes, mas ao ver os vídeos percebe-se instantaneamente que é um teste. Salvo algumas exceções interessantes, embora pouco profundas, a maioria se trata de “mágica filmada”. Da mesma forma que o cinema não pode ser um teatro filmado, pois exige uma linguagem própria, o ilusionismo não pode sucumbir à mera filmagem de um efeito cujo enfraquecimento é inevitável em virtude da falta de reminiscência. Os exemplos mais interessantes – como Dennis Kim, por exemplo – usam recursos audiovisuais de tal modo que o significante completo daquilo que se vê é um efeito de prestidigitação unido à alguma técnica que só o formato permite. Nesse sentido, para atingir uma qualidade mais alta exige-se que mágica e vídeo se construam juntos para resultar em um produto só, tal como Méliès o fez. A problemática da falta de reminiscência permanece de qualquer forma, mas ao menos pode-se atingir um resultado interessante do ponto de vista artístico. Resta ainda analisar se o instagram é uma plataforma que permite algum grau de aprofundamento cultural, pois pode gerar apenas uma categoria menos levada a sério (e se continuar por esse caminho cairá nisso inevitavelmente). Outra opção seria repensar o formato, pois pode ser que uma vídeo-chamada ao vivo seja muito mais interessante do ponto de vista significante, gerando significados mais profundos e trabalhos mais sérios.
1: HARADA, Ricardo Godoy. A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral = Attempting the impossible : the art of conjuring as poetic material of the theatrical scene. 2012. 298 p. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1618657. Acesso em: 20 abr. 2025.