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Diálogos sobre a originalidade: uma perspectiva marxista sobre a criação na mágica

Falar de criação na mágica é um tópico delicado e abrangente. Delicado porque a limiar entre aquilo que pode ser chamado de um “produto novo” tem muitas nuances: um efeito antigo com uma roupagem nova é uma criação? Um efeito exatamente igual ao de outro mágico com uma apresentação diferente é uma coisa nova? A simples mudança de um único movimento em uma técnica já existente é uma nova técnica? E este número de perguntas já nos diz o porque é abrangente, se pode criar na realidade interna – método, dimensão do invisível, segredo – ou na realidade externa – efeito, dimensão do visível, aquilo que o espectador vê. A dimensão do visível nos leva ainda ao conceito de uma apresentação, que pode não ter nenhum número original, mas ter uma história nova e criativa ou uma mistura de mágica com artes do corpo nunca antes experimentada. A problemática é longa, mas mesmo assim, não faltam mágicos vendendo originalidade e esse texto visa analisar alguns destes aspectos. 

No que tange a criação nas artes ocidentais, o conceito de originalidade nem sempre foi o mesmo. Havia uma tendência de seguir a tradição, como o poeta Virgílio quando compõe Eneida, poema épico que conta da fundação de Roma, segue em metade da história a Ilíada e na outra metade a Odisseia, ambos poemas épicos atribuídos a Homero, da Grécia. A esse conceito, a crítica dá o nome de Imitatio, do latim, mas não se trata exatamente da imitação, mas sim da reinvenção por meio da tradição. O mesmo ocorre no renascimento, a retomada das culturas grega e latina através da reinvenção por meio da tradição. Os próprios autômatos, popularizados no século XVIII, já eram criados no século III A.C.  Heron foi um desses criadores e teve o autômato  Hércules e o dragão recriado por Geovanni Battista Aleoti, arquiteto renascentista.¹

O conceito de originalidade ganha espaço no período romântico, principalmente nos séculos XVIII e XIX, quando surgem as ideias de produto original. Com o advento da burguesia, visava-se que o produto artístico ganhasse um valor mercadológico maior, portanto a originalidade servia para dar a característica de mais único ao feito artístico, uma “mercadoria ímpar” nos termos do crítico literário João Adolfo Hansen², no mesmo período começa a ser difundida a ideia de “gênio”. Sendo assim, os conceitos de genialidades criadoras de coisas novas e únicas, são conceitos mercadológicos e românticos.

Parece que na mágica, o conceito de originalidade permeia como um fantasma incombatível. O imaginário de mágicos que disputam entre si o melhor número já foi, inclusive, tema de Hollywood em O Grande Truque, por exemplo, ou seja, a ideia de quem é mais genial. Histórias reais do tipo também acontecem. Brigas sobre a criação e, inclusive, a discussão sobre patente – como houve no caso recente da criação do número Leviosa Phone entre João Miranda e Yigal Mesika, inclusive com um texto sobre patente publicado em nome da loja Vanishing Inc³.

Mas aqui se apresenta a contradição – dialética – de como a questão é abrangente e delicada, como dito na introdução deste texto. Veja bem, a Vanishing inc, uma das maiores lojas de mágica do mundo – talvez a maior – se colocou contra a patente. O texto diz que o leitor poderia ficar surpreso com a afirmação de que eles são contrários à patente. Acontece que é muito óbvio que não ter a patente só favorece eles, que são parte de um monopólio de vendas dos produtos de mágica. Assim, não é difícil imaginar o cenário de um pequeno inventor que, por haver menos recursos para investir em determinada ideia, leve anos para produzir algo que a Vanishing Inc acabará vendendo antes. Não se trata nem de necessariamente copiar uma ideia, como Mesika acusa Miranda de ter feito, mas de proteger legislativamente quem tem menos condições de produzir e pode patentear uma ideia. Não se trata também de defender a originalidade como “produto ímpar”, pois muitas vezes a intenção deste pequeno produtor é manter uma determinada exclusividade do produto em sua performance e não como um produto para vendas. Ainda que a performance seja um produto comerciável em algum sentido, é diferente, pois não se trata de um mercado de grande ou médio número de fabricação, mas sim de alguém vivendo da própria arte performaticamente, ganhando apenas pelas apresentações. A originalidade segue sendo mercadológica, mas ao mesmo tempo, de forma muito menos agressiva do que a venda do produto em uma loja de mágicas. Mas esse cenário é, naturalmente hipotético, serve apenas para ilustrar a obviedade da Vanishing Inc ser contrária às patentes, pois favorece a empresa.

No domínio do visível – realidade externa, efeito, apresentação, aquilo que os espectadores veem – o conceito de originalidade aborda novas problemáticas. Se alastram apresentações iguais e uma que pode ilustrar bem a questão é um clássico: A neve chinesa. É comum na mágica o número onde um papel é colocado na água (em um copo, taça ou algo do tipo) e depois o mágico retira e com um leque ou invisivelmente, pedaços de papel saem voando seco, como uma espécie de demonstração de habilidade onde o mágico ao esfregar as mãos ou abanar cria algo que no imaginário lembra neve, uma vez que normalmente é feito com papel branco, embora haja versões com papel colorido. David Copperfield popularizou uma história contando sobre o sonho de ver neve e depois ir até algum lugar alto, pegar um pedacinho de papel e jogar, lembrando o floco de neve, que depois magicamente se transforma na tal neve chinesa. Essa popularização fez com que mágicos, ao menos do Brasil, reproduzissem o texto de Copperfield, contando uma história igual ou muito parecida. Reproduções do tipo acarretam na ideia de tópos, que é uma imagética, uma história, repetidos de maneira constante em diversos contextos diferentes. Um exemplo é o tópos barroco da navegação à deriva como ideia humana da falta de controle do próprio destino. Outro exemplo é o mito da donzela guerreira, mulher que se disfarça de homem para lutar em alguma batalha (como Mulan, Éowin em Senhor dos Aneis e Diadorim de Grande Sertão: Veredas). Talvez a mágica devesse começar a trabalhar com essa ideia, pois isso traria uma consciência do uso, transformando aquilo que soa como cópia em algo realmente novo. Tal qual Mulan, Senhor dos Aneis e Grande Sertão: Veredas são histórias ímpares entre si, mas todas usam o topos do mito da donzela guerreira, é possível usar a recorrência favoravelmente ao produto artístico em questão.

 Um exemplo de bom uso é o caso de Célio Amino no espetáculo Além da Mágica. O texto começa com “Como vocês sabem, no Japão neva no inverno e para uma criança, tudo ficava difícil nesse momento”. Aqui se vê um uso reconstruído do topos da neve, o que equivale a dizer que aquilo que normalmente é atrelado a sonho e milagre – com simbologias muito próximas ao cristianismo – é desconstruído para um elemento negativo ao falar da dificuldade que nevar acarreta. Além disso, soma-se no texto referências ao Zen Budismo, com palavras de Shunryu Suzuki, rompendo com a lógica eurocêntrica. A construção é feita de uma maneira autóctone e étnica, pois a imigração japonesa faz parte do histórico brasileiro  e ao fazer referência a um passado no qual nevava dentro desta realidade, o uso do topos ganha um sentido diferente. Mas estamos no Brasil e neve não é para qualquer um. 

Vale ressaltar que a ideia não é defender uma cópia indiscriminada, mas sim um recurso menos mercadológico da criação, visando um senso de classe e de criação coletiva. Também vale a ressalva de que o topos é algo socialmente consolidado, não se trata de ver uma performance qualquer e pensar “posso copiar isso por ser um topos”, é necessário que a ideia já esteja consolidada e em uso recorrente para isso valer. Na mágica, o senso de cópia ultrapassa os limites, inclusive com mágicos copiando números que são muito típicos e marca registrada já consolidada – mas individual – de outro mágico. Um exemplo dessa má cópia é o binóculo do Sylvester the Jester, se trata de um equipamento muito característico dele, uma criação singular que moldou a carreira dele, mas mesmo assim há um mágico brasileiro que o copia, nesse caso não é um topos, é roubo de identidade artística.

Juntando os dois planos, o do invisível e o do visível, há ainda o fato de que uma realidade interna diferente pode criar um efeito mágico igual e uma realidade interna igual pode criar efeitos diferentes. Nesse jogo dialético, a originalidade na mágica é um tópico realmente difícil, pois as duas dimensões, somadas à reminiscência, formam um significante – forma, linguagem, poética – completo. Por outro lado, os espectadores só tem acesso ao visível, dando a ideia de que é a mesma coisa, mesmo quando não é. Em termos de apresentação, a ênfase deve ser no visível, aquilo que é apreciado, mas isto deve ser unido a uma realidade interna eficiente para ter um jogo realmente bem construído. Parece que o foco da originalidade, em geral, está no plano do invisível, fazendo a mágica se fechar em si mesma em congressos e em uma espécie de comércio retroalimentado. 

Voltando agora ao imaginário da originalidade que ronda a mágica como romântico e mercadológico, parece evidente que o original enquanto mercadoria ímpar, como falado acima, faz parte de como a mágica se consolida. Eis a contradição: a mágica se apega a ideia de originalidade, visa vender a ideia, mas a cópia é recorrente, mesmo um produto cópia se vende como original no mercado. A mágica parece ser uma das artes mais fechadas com a ideologia dominante capitalista, inclusive em todo o ocidente ela se alia constantemente ao mercado corporativo. 

Enquanto ideia romântica, podemos analisar a própria cultura da mágica. É relativamente comum entre mágicos a ideia de que o ilusionista é alguém que se sacrificou da sensação de assombro para saber os segredos e causar encantamento nos outros. Ideia demasiadamente romântica e, inclusive, cristã. A lógica do sacrifício é comum nos séculos XVIII e XIX, o sacrifício pela amada, retomada do cristianismo. É nesse ponto que a mágica se encontra. Além disso, a mágica nunca superou o simbólico, imagética tipicamente romântica enquanto a alusão é a imagética da modernidade4 . O símbolo é aquilo que existe de antemão, portanto, busca o caráter da universalidade. Acontece que o uno é uma ideia colonizadora eurocêntrica, conforme fala Ailton Krenak5. Essa ideia do uno, cristã e europeia, ronda esteticamente a mágica, constantemente atrelada ao domínio do simbólico, visando a universalidade, quando a chave é a diversidade. Por isso a defesa de uma mágica autóctone – tipicamente brasileira – é contrário a isso.

Exemplo típico do uso simbólico é a corda cortada e restaurada unida a um texto de auto-ajuda típico de quem faz a aberração de misturar mágica e palestra motivacional. É justamente o símbolo da restauração (morte e ressurreição, no limite) usado para falar de uma restauração psicológica em moldes comportamentais. É uma busca por um positivismo universal apegada ao símbolo que cria esse tipo de coisa que, no caso, não pode ser chamado de topos

Já um exemplo positivo é a personagem Batelô de Caíque Tostes. Trata-se do uso de um símbolo, a carta número I do tarô, O Mago. Mas ao aportuguesar a pronúncia com o circunflexo em Batelô (referência ao nome original da carta: Bateleur), Caíque o faz de forma antropofágica. Além disso, usa referências estéticas de Arthur Bispo do Rosário, prisioneiro manicomial brasileiro que costurava com linhas de roupas que desfazia e criava com objetos do cotidiano, em busca do sagrado e da ideia de fazer o inventário do mundo. Apesar do caráter universal, Caíque o faz de maneira autóctone, ainda unindo a isso referências a um topos de diversos mágicos de rua brasileiros, a performance com bolsas de troca e a promessa de que uma cobra vai aparecer. Ao unir todos esses elementos, apesar do caráter de uma busca universal e simbólica, atua na chave da diversidade e não da universalidade, criando uma personagem tipicamente brasileira.

Outro aspecto romântico da mágica, é a autoexpressão. No romantismo, a ideia de uma arte enquanto expressão de si mesmo, dos seus sentimentos, era a dominante. Mesmo Eugene Burger e Tamariz – teóricos que admiro muito – defendem a ideia de “seja você mesmo”. Uma espécie de busca interior para levar para a performance. É romântico e obsoleto, no palco ou em cena, você já é automaticamente outro e é necessário assumir isso. Essa reflexão ainda dará um outro texto no futuro, pois já me alonguei muito aqui.

Para concluir, quero deixar claro que esse texto não visa uma defesa da cópia e uma luta contra a originalidade, mas apenas analisar e entender as vicissitudes de determinados aspectos que nos dizem como a mágica se configura hoje em dia, sobretudo no Brasil. Parece ser um fato que a mágica é marginalizada no campo das artes em geral e mesmo em seu campo de especificidade, o que equivale a dizer que a mágica é obsoleta no campo das artes performáticas. O fato da mágica ser condizente com a ideologia dominante, ou seja, o consumismo mercadológico, cria um efeito oposto que a marginaliza e os conceitos de originalidade, de símbolo, de universalidade, são aspectos românticos e obsoletos que fazem a mágica, não raramente, cair no senso comum. Talvez, conforme fala Haroldo de Campos6, devemos nos prender na ideia de que ser de vanguarda – ou seja, criar algo novo – é buscar no passado uma resposta para uma pergunta do presente, precisamos criar o novo por meio da tradição.

1: HARADA, Ricardo Godoy. A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral = Attempting the impossible : the art of conjuring as poetic material of the theatrical scene. 2012. p. 22 Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/878077. Acesso em: 26/09/2025. 

2: João Adolfo Hansen, “Etiqueta, Invenção e Rodapé: O Guesa de Sousândrade”, p. 15.

3: https://milled.com/vanishing-magic/the-vanishing-inc-edition-issue-10-iWCqbnII7CgGdICh.

4: Ver Haroldo de Campos, Transcriação, organização Marcelo Tápia.

5: Ver Ailton Krenak, Ideias Para Adiar o Fim do Mundo.

6: Conforme entrevista para o Roda Viva: https://www.youtube.com/watch?v=z7eyMRvd5Ag 

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