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A DIALÉTICA ENTRE A TÉCNICA E A APRESENTAÇÃO NA MÁGICA

Já no artigo Diálogos sobre o segredo: Uma perspectiva marxista sobre a revelação de mágica abordei a contradição de parte da riqueza da mágica estar em uma dimensão que não chega ao público – o invisível, realidade interna da mágica, o segredo. Como o tema desse texto era a revelação de mágica, quero agora aprofundar esse quesito. Uma vez que a dimensão não visível da mágica tem como objetivo não ser percebida, temos de antemão a ideia de que para o resultado final de um número/efeito/ato o grau de complexidade daquilo que acontece no plano do invisível, aparentemente, não importa, visto que o resultado final – o visível, realidade externa da mágica, o efeito – é o objetivo principal.

Todavia, é necessário considerar que a performance em um todo não é só o efeito, mas as camadas de significação que o mágico dá em sua apresentação. Há, portanto, uma relação contraditória na qual a técnica, não importando seu nível de complexidade, nunca deve ser percebida, enquanto a apresentação é o foco no qual o espectador tem acesso. Porém, a apresentação está sempre respaldando a técnica e a técnica sempre respaldando a apresentação. O que equivale a dizer que uma performance bem construída leva em consideração as duas coisas em um grau de igualdade. Um bom ato que exemplifica o que está sendo colocado aqui, é o ato campeão mundial do Yann Frisch¹, no qual a personagem justifica os movimentos que permitem uma técnica dinâmica que seria difícil de ser tão invisível com um mágico tradicional em cena. Mas o grau de complexidade da realidade interna não é necessariamente proporcional ao grau de complexidade da realidade externa. Um bom exemplo dessa não proporcionalidade seria o ato de Gypsy Thread (efeito onde uma linha é cortada em vários pedaços e no fim restaurada) de Eugene Burger², onde o valor da simplicidade está em jogo, pois os elementos estéticos (caixinha, mini castiçal, mini vela) e prosódicos – tom de voz, ritmo de fala – criam uma apresentação rica, embora tecnicamente simples.

Podemos analisar esse tensionamento entre técnica e apresentação a partir do que fala René Lavand; a ideia de que um bom número deve ser simples em seu exterior, mas guardando uma complexidade em seu interior. Porém, quando René Lavand afirma tal coisa, provavelmente não está falando necessariamente da realidade externa e interna de um efeito, basta ver Las Migas³, número com uma técnica muito simples, mas que apresenta riqueza devido ao texto e a maneira como ele é contado. O próprio tema da beleza do simples faz parte do ato, dizendo encarnar toda uma filosofia do simples, mas que há uma diferença entre o simples e a “simpleza4. O ato tem uma realidade interna simples, enquanto a realidade externa é potente, atingindo aspectos do belo. Na teoria lavandiana, portanto, o que ele considera complexo não é essencialmente a técnica, mas toda a roupagem, roteiro e pensamento do número, com ênfase na apresentação.

Na mágica, não raramente, também ocorre o oposto, uma realidade interna muito rica com uma realidade externa pobre, resultando normalmente em números complexos de entender – normalmente processuosos – resultando em efeitos fracos. Talvez quando isolados em uma categoria de “mágica para mágicos” esses números tenham algum espaço. Mas o que acontece em geral é que, mesmo com uma apresentação muito potente, o objetivo final (assombro) da mágica fica em segundo plano. O que nos traz mais uma contradição: o foco na realidade interna pode enfraquecer o assombro por resultar em uma realidade externa muito pobre ou, em outras palavras, um efeito muito fraco.

Agora analisando a ideia toda, principalmente no que tange atos de realidade externa e interna complexas, parece haver algo do invisível que comunica. Talvez seja uma espécie de satisfação pessoal do mágico, talvez a própria complexidade da realidade interna dê uma atmosfera, talvez algum mágico na plateia que veja o que está acontecendo passa seus sentimentos às outras pessoas, talvez ainda, tudo isso junto. Parece que a instância do invisível (realidade interna, segredo) quando rica, unida à uma instância do visível (realidade externa, efeito) também rica, cria um significante – um todo da apresentação – que comunica algo, mesmo quando parte disso não é visto. Embora hipotética, essa combinação que se faz presente, seja pela postura, comportamento, tom de voz do mágico, cria de fato um todo belo. Mas, ao mesmo tempo, não devemos cair na armadilha de entender que essa proporcionalidade deva sempre ser levada à risca. Pelo contrário, O que defendo aqui é que devemos, em síntese, buscar ter a consciência de que: 1) o foco é sempre a realidade externa; 2) Ainda que o foco seja a realidade externa, usá-la para justificar uma realidade interna ruim, geralmente afasta do objetivo da mágica; 3) uma realidade interna simples não significa ser ruim, muitas das soluções da mágica são simples e geram efeitos potentes; 4) o uso de uma apresentação boa para justificar um efeito ruim, ainda que de realidade interna rica, geralmente é uma má escolha na performance.

Naturalmente que quando teorizo qualquer coisa aqui, faço por um exercício de reflexão meu e daqueles que leem, portanto, não se trata de criar regras irrefutáveis, pelo contrário, trata-se de criar um movimento no pensamento coletivo. O ideal é que pense em mais combinações possíveis sobre esse tensionamento entre técnica e apresentação, mas sobretudo, entender que analisar essa proporcionalidade de complexidade entre realidade interna e externa é papel de qualquer um que faça mágica. Trata-se de adquirir mais consciência daquilo que se faz para poder comunicar melhor esse fazer. A proposta aqui, é entender que existe um tensionamento entre o plano do visível e o plano do invisível, do efeito e do segredo, da apresentação e do efeito, da realidade externa e realidade interna da mágica. Ao entender isso, acredito, o ato criativo ou de pesquisa se torna mais claro e o senso crítico de quando se assiste algo também.

1: Me refiro a https://www.youtube.com/watch?v=9w7QAr13FP0 

2: Me refiro a https://www.youtube.com/watch?v=E7zUX-fYgu8&t=1s 

3: Para o ato https://www.youtube.com/watch?v=W-2W0ARFV-w, para a ideia da complexidade e da simplicidade, além do próprio texto do ato, ver o livro, de René Lavand, La Belleza del Asombro

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