No final de semana de 15/08/2025 a 17/08/2025 aconteceu o espetáculo Artifaces composto pelo Elenco de Ortega, Alejandro Muniz, Bruno Mariotti, Maga Caro, Dr. Bona e Everton Machado. Assinam a direção os campeões latino-americanos – com um ato em dupla – Alejandro Muniz e Juan Araújo. O espetáculo é um show de variedades (cabaré/varieté) que compôs o leque de performances do Festival Internacional SESC de Circo, do qual já foi feita uma crítica ao espetáculo Goupil e Kosmao.
Este autor se abstém de falar qualquer coisa imparcial de Ortega, pois lembra que quando estava começando, em um evento – na época mensal – chamado Mercado Mágico, viu Ortega, recém vencedor de um campeonato brasileiro de mágica se não falha a memória, apresentar o clássico dos copos e bolas em uma rotina extremamente bem estruturada, fato que com certeza fixou sua vontade de atuar com poética, clássicos e mágica. No espetáculo, Ortega fez três entradas: Aros Chineses, número no qual argolas se entrelaçam e se separam magicamente. Um número poético, inteiramente rimado, no qual um trapaceiro faz um número de cartas onde nunca se sabe onde está o rei e no final as três cartas se transformam em reis. E um outro clássico no qual um mágico erra uma carta falada pelo público e a partir de uma sacola cheia de cartas dobradas, por fim o mágico acaba acertando pegando a carta escolhida. Esse número ganha uma roupagem do primeiro kit/mala de mágicas dele com uma história envolvente. O mágico vai tirando itens da caixa que foram seus primeiros números e dando falas arraigadas de simbologias, coisas como (com toda a reminiscência que impede de descrever em detalhes) “O colar de Okito, onde qualquer escape era possível”. Ortega é apoteótico, tudo é recheado do belo. Parece que a pesquisa com os clássicos, o brilho no olhar, as palavras bem escolhidas, a prosódia assertiva, tudo grita poética. O mais simples detalhe torna-se gigante, destaco um momento do número do primeiro kit de mágicas onde ele tira da mala “o meu lenço invisível” arrancando risadas da plateia e quando ele vai colocar no lugar onde estavam os outros “primeiros números de mágica que aprendeu”, o lenço se produz, causando uma reação de assombro na plateia como raramente se vê em uma produção do tipo. Provavelmente resultado de um ritmo certeiro, com a intercalação entre a apresentação que faz o público rir (lenço invisível) com a mímica ressaltando a mão vazia e enfatizando a impossibilidade (o momento de exposição do número, como diz Ricardo Harada), para quando vem a inesperada produção causar aquele “Oh” de assombro de que fala Ascanio, mas isso é só um detalhe. A rotina de aros é altamente técnica e deixa qualquer um, mesmo os que sabem o segredo, de queixo caído. É uma coreografia extremamente bem construída, seus aros ganham destaque na luz, onde pequenos brilhos que refletem tornam tudo esteticamente bonito. O número do trapaceiro é a junção perfeita entre mágica e poesia, com elementos que parecem remeter ao cordel, é uma fala fluída, rimada, mas que não atravessa a mágica, tornando ela extremamente eficaz no assombro. É mágica bem feita, é clássico bem feito, é o belo.
Bruno Mariotti, também recente campeão latino-americano na categoria de magia geral, é um acontecimento. Este que escreve, sinceramente esperava pouco e recebeu tudo (mais que muito). A plateia mais que reage, urra diante dos feitos. O ato se trata de um sapato que vai ganhando vida, uma gravata constantemente some e aparece nele. Depois teve uma entrada na plateia, onde o simples número clássico das bolas de espuma ganhou a reação do público. Como crítico, infelizmente, não posso deixar de destacar que ele errou a ideia de um princípio teórico – com a ação de trânsito ascaniana – de Gascon, especialista em bolas de espuma. A ideia era despistar a ação tramposa com a escolha do espectador entre “bola redonda e bola vermelha” quando as duas eram iguais e depois do número supostamente falhar, o mágico pegar a bola da mão do espectador dizendo como uma piada “É que essa era a vermelha e você escolheu a redonda” para nesse momento fazer a ação tramposa. Bruno não executou com precisão a segunda parte, felizmente, as bolas de espuma são fortes o suficiente mesmo com a ausência desse detalhe, que sim, enriqueceria, mas que também não atrapalhou em nada, pois a reação da plateia foi gigantesca. É curioso como esse número, feito de um dos cantos da plateia, causou tanta reação, mesmo com o artifício do telão, mas deste falaremos depois.
Maga Caro e Dr. Bona apresentam um ato de cartomagia em dupla. Acredito não ter palavra melhor para descrever que: chato. Foi tentado achar um qualitativo que tornasse o texto mais estilístico, como de costume este crítico tenta, mas essa palavra é tão perfeita para designar o que aconteceu. Essas cinco letras representam toda a pequenez desse ato que, infelizmente, enfraquece um show de variedades tão rico e poético. O número é servido de parêntesis anti-contraste, explico. A composição de um efeito mágico é dada por meio de uma situação A que chega em uma situação B. A diferença entre a situação A (momento de exposição) e a situação B (momento após o efeito mágico) deve ser clara. Quando algo no meio atrapalha a percepção desta diferença – ou melhor, contraste – entre A e B, temos o que Ascanio chama de parêntesis anti-contraste. Pois é isso que ocorre, os números são recheados de processos para no fim acontecer um efeito pouco potente que não ressalta impossibilidade nenhuma, pois não é clara a diferença entre a situação A e a situação B. Os aplausos foram todos forçados com a técnica de Dani DaOrtiz, em que ele faz uma comparação com uma garrafa de champanhe que se chacoalha e depois estoura, ou seja, trata-se de culminar até o clímax de um efeito que vai sendo construído e causando um chacoalhão interno nos espectadores, para quando chega o ponto alto, bater na mesa e tirar aplausos fervorosos, em outras palavras, forçar os aplausos. Acontece que no ato de Maga Caro e Dr. Bona não vemos a garrafa chacoalhar e no fim a batida na mesa virou só um indicativo de que o número acabou e a reação foi nada mais que aplausos de educação. A impressão que fica é que o público não entendeu o que aconteceu muito bem, pois foram duas pessoas constantemente fazendo processos que culminaram em efeitos fracos que não convenceram. É uma pena um espetáculo tão rico ter tido uma entrada tão ruim.
Alejandro Muniz é um prosador sui generis. A primeira entrada, na qual ele apresenta o espetáculo, enche os ouvidos de beleza e encanto sem nem mesmo ter feito mágica. Na segunda entrada ele apresenta uma versão do ato clássico da ervilha e das cascas de noz, número que tem origem como um jogo de trapaça no qual o espectador nunca acerta de baixo de qual noz está a ervilha. O ato de Alejandro é permeado por um sino que ele toca o tempo todo, sendo acompanhado por um espectador ao seu lado. No final, a ervilha aparece embaixo deste sino, transformando aquilo que é um jogo clássico de trapaça em um número extremamente mágico. Depois ele dá o sino ao espectador que ao tentar tocar, ouve o silêncio e nada mais. Usei até aqui a terceira pessoa, e farei a troca para a primeira propositalmente, pois este número botou abaixo as minhas diversas concepções e opiniões teóricas. O ato tinha tudo para dar errado, mas deu extremamente certo. Em primeiro lugar, estava em um palco apresentando um número com um objeto minúsculo, do tamanho de uma ervilha e cascas de noz. O número, para a plateia, fica dependente do telão, ponto que normalmente torna a coisa toda muito negativa e empobrece um número cenicamente, mas não é o caso. Provavelmente porque o número é permeado pela poética assertiva da prosa de Alejandro Muniz e também por ter um espectador como testemunha, isso faz o telão funcionar muito bem, mostrando que toda teoria pode ter sua exceção. Acontece que o uso do telão gratuito é sim negativo, mas aqui, o ato parece prender-se a ideia – muito correta por sinal – de que a mágica acontece na mente do espectador, é como uma semente que é colocada ali que continua germinando. Assim, ter um espectador vendo de perto como uma testemunha transmite a sensação mágica necessária no ao vivo, a gente compartilha, imagina junto, reage junto. O espectador em cena é um canal de transmissão de assombro que passa para a plateia, que por sinal reage bem. A ideia do sino não bater no final, poderia ser um anticlímax, já que a ervilha aparecer embaixo do sino é um efeito tão inesperado que a plateia reage muito, na batida em que o sino não toca, reage menos. Mas nesse caso, funciona como uma cereja do bolo, como o sino tem uma dimensão sonora, quando ele não toca – e o efeito acontece na mão do espectador transmissor de assombro – nos lembra que Alejandro sabe o tempo todo que está em um teatro, o número pequeno se agiganta, funcionando muito bem, ainda que a reação seja menor nesse efeito final que no teletransportar da ervilha. Aqui vemos, que nem sempre o clímax é o momento onde um efeito deve acabar, mas claro que é necessário ter cuidado com essa ideia, pois não somos todos um Alejandro Muniz.
O espetáculo, que vinha até então com clássicos, de repente tem o ato final bastante inovador de Everton Machado – o mais recente campeão do grande prêmio latino-americano. O telão sobe e lá está o pintor, lado a lado com uma tela. De repente ele começa com diversos efeitos onde pincéis somem e aparecem, a tinta se solidifica virando uma bola, que vira pincel e assim por diante. O final culmina em um clímax onde a pintura se mexe e o rosto do pintor simplesmente desaparece. O ato de Everton Machado é um desvendamento muito forte da teoria haradiana, pois mistura elementos de teatro e mágica muito bem. Os efeitos são extremamente fortes, tudo é muito mágico, além de ser permeado por uma espécie de metalinguagem na qual o ato fala de si mesmo sem dizer uma única palavra. O conceito é muito rico, pois a pintura que ele vai pintando (na qual acontecem diversos efeitos, como desaparecer um borrão, se mexer etc) é um auto-retrato, demonstrando um caminho que fala da arte pela arte, de si para si, mas que ao mesmo tempo comunica o público sobre cada um dos feitos. É uma espécie de mágica sobre mágica, servida de elementos teatrais, tudo falando do ato em si, mas que a cada momento faz os espectadores se conectarem com os efeitos e terem assombro. Não à toa, saindo do teatro, houve o que parecia ser uma família grande, mais ou menos de dez pessoas e uma das mais velhas perguntou “Qual vocês gostaram mais?”, no que uma adolescente respondeu “O último” e todos começaram a reagir com coisas como “é, o último realmente”; “é muito impressionante”; “velho, o rosto sumiu”. Mas ainda haverá uma crítica mais completa deste ato aqui no Adoro Mágica.
A roupagem geral do espetáculo é ótima. A ordem poderia ter sido um pouco melhor escolhida, pois o ato do trapaceiro e o ato das cascas de noz e ervilha são muito próximos, sendo separados apenas pelo ato de Maga Caro e Dr. Bona. O efeito é muito similar, praticamente o mesmo, em um, nunca se sabe onde está o rei entre três cartas, em outro, nunca se sabe de baixo de qual das três cascas de noz está a ervilha, sendo assim, a proximidade gera uma falha de textura. O telão, como raramente acontece, funcionou bem, mas poderia ter um melhor diálogo estético com o espetáculo em si. O cabaré é recheado de clássicos e termina com o ato fulminante de Everton Machado que é extremamente inovador, talvez a estética do telão poderia seguir esse caminho, algo que remeta à história da mágica (pinturas antigas, como as de Bosch, fotos de mágicos clássicos, cartazes de Thurston, fotos mais modernas), mas são só ideias que tornariam o telão menos um artifício para ver melhor e o faria também compor um cenário. Mas o espetáculo é realmente ótimo, servido de poética e de um respeito ao impossível que raramente se vê.