Este artigo fecha uma trilogia. Escrevi nesta coluna os textos Diálogos sobre o segredo: uma perspectiva marxista sobre a revelação de mágica e Diálogos sobre a originalidade: uma perspectiva marxista sobre a criação na mágica que, apesar de terem uma linha de continuidade, funcionam separadamente entre si, sem precisar ler em nenhuma ordem ou ler todos. Quero fechar agora fazendo uma análise sobre os principais símbolos da mágica, centrando em três: fraque, cartola e varinha.
Não é segredo, basta perguntar para qualquer pessoa não-mágica o que ela imagina quando pensa em um mágico e a resposta será algo parecido com: um homem, de cartola, provavelmente fraque, possivelmente pombas e talvez uma varinha mágica. Mas há uma história antes dessa vestimenta. A mágica costumava se misturar com outras formas de arte nos jograis, considerados uma espécie de cultura popular da idade média. Esses grupos atuavam em geral no espaço público, na rua. Muitas vezes eram contratados por nobres e reis, sobretudo no carnaval, mas há registro de apresentações em festas da nobreza. No século XVII, começam os físicos recreativos, com demonstrações de pseudociência, em um tempo onde a busca pela iluminação e esclarecimento estava em voga. Na segunda metade do século XVIII, um mágico italiano chamado Giuseppe Pinetti, misturava física recreativa e prestidigitação em seus espetáculos. Já há relatos de Pinetti com “vestimentas adornadas em dourado, as quais trocavam três ou quatro vezes durante a noite, incluindo um uniforme de general, além de estar coberto com numerosas medalhas de honra” (CLARK, 2001, p. 167, tradução de Ricardo Harada). Um tempo depois e chegamos no pai na mágica moderna: Robert Houdin, nome conhecido por revolucionar as invenções, as técnicas, a aliar a mágica com apresentações em teatro. Em Houdin, temos já a imagem clássica imaginada: fraque preto, cartola e varinha¹.
Embora os jograis fossem muitas vezes contratados pela corte, havia um aspecto de dissidência, tanto que inclusive satirizavam as figuras de poder, além disso, muitos foram perseguidos durante o período da inquisição. A modernização da mágica, que começa com os físicos recreativos, chegando na figura de Pinetti e evoluindo até Robert Houdin, significa também uma aliança com os ideais dominantes. O que equivale a dizer que o ilusionismo sai de sua função dissidente para operar dentro dos moldes da cultura nobre e, posteriormente, burguesa. Sendo assim, o fraque (as roupas com ornamentos dourados em Pinetti) tem o objetivo de se igualar à classe dominante. Na mesma esteira, a cartola e o fraque preto surgem em um contexto posterior, se igualando com as roupas de baile da época, que visavam uma elegância já mais confortável. Isso vai evoluindo para o terno, que os mágicos também aderiram.
Portanto, gostaria agora de analisar as contradições – já que parto do pensamento materialista dialético. Em um primeiro olhar, se igualar às classes dominantes pode ter o atributo de sobrevivência, tanto financeira quanto das perseguições aos jograis da inquisição². Por outro lado, a mágica vive um estatuto de arte marginalizada, de arte secundária. Sendo assim, ao se aliar às culturas dominantes, a mágica se marginalizou, pois sempre se manteve como uma arte silenciosa. A Commedia Dell’Arte, por exemplo, também fazia parte dos jograis e continuou gozando de um estatuto transgressor e dissidente (ainda que as companhias fossem muitas vezes contratadas por reis e nobres, a sátira fazia parte de sua construção) e hoje goza de um estatuto canônico entre estudiosos de teatro.
Na mesma esteira, a mágica se aliou e se alia aos formatos de marketing, sempre tentando estar na esteira do capitalismo. Mesmo assim, isso sempre fez dela uma arte secundária e marginalizada no âmbito das artes performativas. Isso fez com que a crítica nunca olhasse para o ilusionismo, fazendo com que houvesse uma produção textual que, geralmente, se restringe apenas ao âmbito dos círculos internos dessa arte. Portanto, a figura imaginada de um mágico, não está no domínio do simbólico, pois símbolo é aquilo que é dado de antemão, enquanto a formação com a ideologia dominante que fez os mágicos quererem se igualar com os membros dessa classe é posterior e socialmente formada. Por outro lado, podemos dizer que os mágicos tornaram simbólico a vestimenta eurocêntrica das classes exploradoras, inclusive escravocratas. É muito curioso observar, que o ilusionismo é uma arte performativa que escolhe como seu figurino uma roupa de uma classe ao invés de algo que dialogue com o significado daquilo que propõe artisticamente. Ao mesmo tempo, as roupas vão ganhando um aspecto utilitarista, pragmático, pois passa a favorecer determinadas técnicas, segredos e até mesmo no sentido de onde colocar as coisas (como a cartola comumente é usada).
Para analisar a varinha, partirei da teoria de Robert Neale³. A varinha é um mini cajado. O cajado também era um acessório da nobreza, que com suas vestimentas ostensivas, usava um cajado de acessório, normalmente com algo de valor na ponta – ornamentos de metais preciosos ou mesmo pedras preciosas. O bobo da corte usava roupas que visavam satirizar a nobreza, assim usava um sapato de nobre, mas muito maior do que o pé, uma roupa mais apertada do que deveria e um cajado, mas pequeno. Segundo Bob Neale, essa seria a origem do uso da varinha para os mágicos. Considerando a origem da prestidigitação enquanto arte performativa nos jograis, faz sentido, já que as classes artísticas se misturavam. Assim, enquanto a cartola e o fraque são elementos ostensivos que visavam se igualar às classes dominantes, a varinha servia para satirizar. Tal elemento demonstra um jogo dialético, possivelmente resultante da falta de consciência dos mágicos, onde um elemento de sátira e um de ostentação daquilo que se satirizava compunham a mesma imagem de um artista em cena.
Para concluir a trilogia, gostaria de esclarecer que isso tudo é que compõe a minha visão crítica não tão elogiosa à arte mágica. Isso equivale a dizer que meu apreço pela arte é muito mais pela sua potência do que pela maneira como ela se consolida em sua execução. Em praticamente todas as formas de arte, a gente vê momentos de tensionamento com a ideologia dominante, o que garantiram a elas um estatuto muito mais canônico do que a mágica. Por isso, minha tese é que a mágica, ao buscar se igualar e andar lado a lado com as ideologias dominantes, não buscou nenhum tensionamento. Essa falta de tensão fez com que a arte ficasse sempre à margem, pois ela se silencia ao lado daqueles que dominam, não é escutada. Fez também com que a crítica olhasse pouco para o ilusionismo e os comentadores, seja com comentários negativos ou positivos, sempre alavancaram os outros campos de arte. A mágica, ao meu ver, precisa urgentemente romper com a ideologia dominante, confrontá-la, encontrar uma forma de se expressar que seja contra-corrente ou, em palavras mais diretas: a mágica precisa fazer barulho.
1: As informações e citação acerca da história foram todas retiradas de: HARADA, Ricardo Godoy. A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral 2012. p. 25-44 Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/878077. Acesso em: 22 out. 2025.
2: Vale ressaltar que essas perseguições não tinham necessariamente relação com o fato de acreditarem que os mágicos tinham poderes sobrenaturais, as justificativas eram diversas, inclusive, por exemplo grande habilidade manual, afronta à ideia de que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança (devido as máscaras e maquiagens). Malabaristas e artistas de outras artes também foram perseguidos com as mesmas justificativas (IBID).
3: Ver Breaking Our Magic Wands, Robert Neale

