Um dos assuntos do que me dediquei na vida foi o estudo da educação física e dentro desta existem os estudos dos jogos, de suas relações e lógicas internas e externas a este, assim como na mágica há investigações similares, muitas vezes com essa mesma terminologia e em temas análogos.
Feita essa explicação inicial posso começar a minha comparação.
A mágica, assim como os seres humanos, é multifacetada. Uma dessas facetas é a de que ela é uma forma de jogo cooperativo. E antes que possamos continuar quero trazer a definição: Jogos são uma atividade lúdica que possuem suas regras e seus pressupostos que definem o que os compõem e não compõem e, embora haja liberdade dentro da atividade em si, suas regras básicas não podem ser rompidas, pois acarretaria em sua destruição. Tendo essa definição básica surge a questão: o que é então um jogo cooperativo? Dentre os tipos de brincadeiras que existem na sociedade humana há a ocorrência dos jogos cooperativos que contém uma estrutura alternativa na qual os participantes jogam uns com os outros, ao invés de uns contra os outros, ou seja, um conjunto de pessoas participam de uma atividade com um objetivo predeterminado e comum a todos os participantes. Estes podem ter cada um uma função diferente dentro do jogo, porém todas as ações individuais contribuem para chegar no objetivo final.
Sob esse viés vejo a mágica muitas vezes como uma forma de jogar junto com o espectador para alcançarmos o assombro. Aí entra a noção da mágica enquanto jogo cooperativo: mágico e espectador agem de forma conjunta, cada um com sua função para que o objetivo do assombro seja atingido. Assombro é a sensação causada pela experimentação da sensação de impossibilidade,o que em última instância é o objetivo primordial da mágica.
É verdade que, muitas vezes, nos momentos iniciais de uma performance de mágica vemos essa atuação mostrando a lógica interna de um jogo competitivo, mas é trabalho do mágico desfazer essa noção na cabeça do espectador por uma gama de ferramentas que dispomos enquanto mágicos.
Entre as ferramentas que podemos citar temos a teoria do desafio do mágico alemão Pitt Hartling onde o mágico induz o espectador a criar um desafio no qual o mágico cumpre, facilitando a suspensão da incredulidade.
A suspensão da incredulidade é o estágio psicológico do espectador onde a resistência à aceitação do fenômeno impossível mostrado pela mágica acaba. A experimentação do assombro, inicialmente pode ter uma recusa por parte do participante, uma vez que é objetivamente uma quebra da realidade vivida por ele, quando este aceita essa quebra da realidade como uma verdade é que existe a suspensão da incredulidade (ou suspensão da descrença). Nesse ponto o espectador passa a desfrutar do assombro em sua máxima potência. Esse tema já foi extensivamente estudado tanto no teatro quanto na mágica, embora em aspectos diferentes. Um exemplo disso é o que Henning Nelms apresenta no livro “Magic and Showmanship” tratando da ressignificação do termo para o uso na mágica. Quando vemos a suspensão da incredulidade no teatro, se trata do estado cujo espectador aceita o jogo proposto e não questiona a impossibilidade daquilo que vê. É, por exemplo, quando numa peça o Peter Pan voa e não existe o questionamento da realidade daquilo, pois se viu cabos, portanto, é quando o espectador adere à proposta da narrativa. Na mágica a suspensão da incredulidade ocorre numa perspectiva diferente, embora seja também quando o espectador adere ao jogo e passa a não questionar. A diferença de ponto de vista ocorre no cenário, em Peter Pan o cenário é uma realidade fantástica onde pessoas voam, na mágica o cenário é a vida real e a impossibilidade de acontecer um voo, o fato de não se ter cabos é o que torna todo aquele momento memorável.
É o momento cuja suspensão acontece, portanto, passamos a ter o jogo de mágica completamente cooperativo e, então, a sua maior potência enquanto capacidade de gerar assombro. Acredito que essa é uma noção existente na mágica, embora nunca tenha visto a teorização acerca do uso dessa expressão. Verdade que existe em espanhol o uso do termo juego de magia, o que me leva a crer nessa visão cuja mágica é um jogo no qual se coopera.
Portanto, a mágica passa a ser um jogo teatral cooperativo entre espectador e performer com o objetivo de reproduzir impossibilidades, aqui podemos ter o desenvolvimento real dos temas propostos pelo mágico e a mágica atingindo seu maior potencial.
Claro, todos nós mágicos já nos encontramos com pessoas indispostas a jogar, é um fato que isso vai acontecer. Está tudo certo, o momento antes da suspensão tem que ser o momento onde convencemos os espectadores a entrar no jogo da mágica. Todos já estivemos nesse papel em nossas brincadeiras infantis, o lugar onde queremos jogar algo e temos que convencer nossos amigos a fazê-lo ou o contrário, onde somos convencidos por um amigo a experimentar algo novo ou diferente. Quando pensamos bem, o primeiro estágio de cada brincadeira é a definição de regras e a explicação do seu funcionamento, por que seria diferente com a mágica? Talvez a diferença resida na forma como essa explicação e convencimento acontecem dada a natureza performática da mágica.
Concluo, portanto, que cada performance mágica se divide em dois momentos antes e depois da suspensão da incredulidade e cada um desses possui suas particularidades no estabelecimento do jogo cooperativo de mágica. O primeiro estabelece as regras com o espectador e o coloca na posição de participante de um jogo cooperativo e, por meio das ações tomadas nessa etapa, atinge-se a suspensão da incredulidade. O segundo momento é o jogo com o espectador na posição de participante onde temos a mágica atingindo seu maior potencial enquanto fenômeno gerador do assombro, ou seja, o momento onde mágica é … mágica.