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O COLONIALISMO ILUSIONISTA: POR QUE A MÁGICA BRASILEIRA AINDA É IMPORTADA

Não joga-se uma bomba e vira-se as costas; algumas coisas precisam ser esclarecidas. Esse artigo, portanto, seguirá uma linha de continuidade com o anterior, embora sua leitura individual também se satisfaça isoladamente. O primeiro dos esclarecimentos é o mais necessário de todos: não se deve confundir autóctone com qualquer expressão de nacionalismo. Quando lanço a ideia de uma mágica autóctone, o faço com todo horror à ideia de nação e nacionalismo que sempre jogou a humanidade por caminhos muito obscuros. Mas trata-se, também, de atuar com outras inteligências. Um poema de Oswald de Andrade pode ilustrar bem a questão:

erro de português

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português¹

Ser autóctone é despir o português, o europeu, o estadunidense. Assim como muito bem ilustrado no poema piada típico oswaldiano, é necessária uma busca por uma inteligência nova. Ao se pensar autóctone, dois exemplos na mágica ilustram a questão: Rapha Santacruz e Caíque Tostes. O primeiro com sua personagem muito bem consolidada, Matuto, usa elementos nordestinos: o pífano no lugar da varinha, as músicas típicas, uma escultura de barro que se move, sempre envolvendo comicidade física e elementos da palhaçaria. Mas Rapha Santacruz é regional e o país é gigante, portanto, Rapha é autóctone, mas fracionário, uma parte de um todo que ainda não existe. Caíque, na mesma esteira, busca uma expressão com o tema Cura através do seu Batelô, nome que é um aportuguesamento de Bateleur, termo francês para a carta número I do Tarô. Expressão bastante autóctone e, inclusive, antropofágica, já que ao abrasileirar um elemento francês, trabalha com a mística do tarô de modo novo e brasileiro. Aliás, a expressão da misticidade ou, melhor dizendo, do mágico-simbólico, foi matéria artística para Guimarães Rosa e Clarice Lispector, esta inclusive escreveu um texto chamado “Literatura e Magia”² para um congresso de bruxaria no qual participou, matéria autóctone reproduzida a seu modo por Caíque Tostes em intervenções de mágica. Mas também é fracionário e repito propositalmente: uma parte de um todo que ainda não existe.

A questão é que a mágica brasileira não existe e precisa ser inventada. Faz-se necessária uma escola, precisamos nos organizar. O Reggae, o Funk Carioca e o Hip-Hop têm editais de fomento exclusivos, tudo a partir de argumentos autóctones. Se a mágica brasileira fosse grande e organizada o suficiente, poderíamos ter um fomento público exclusivo para a mágica, já que todos esses editais de financiamento são resultados de grupos organizados. O problema é que a comunidade mágica brasileira não é suficiente nem para se colocar enquanto categoria. Isso precisa mudar e o começo de tudo é uma escola.

A escola não precisa ser física, mas definitivamente pensante. É necessário aliar prática e teoria; comer e digerir o que for benefício de fora e assimilar em uma cultura interna, nossa, própria e única. O caminho creio que já esteja inconscientemente sendo trilhado: é a mescla de linguagens. Todos os trabalhos brasileiros significativos mesclam linguagem; a teoria do Harada já visava uma busca, praticamente obsessiva, de descobrir como misturar mágica e teatro, os dois mágicos citados aqui misturam a mágica com outros elementos artísticos (e até supra artísticos como a psicanálise). Mas é preciso aprofundar. É preciso achar um caminho próprio, criar um pensamento mágico, uma teoria mágica e uma prática mágica única e nossa. 

O caminho é tortuoso e é necessário lembrar da derrocada de Macunaíma: ao trair a filha de Pei, a Sol com uma portuguesa, terminou castigado, dilacerado virando a constelação Ursa Maior em uma espécie de punição que lembra a eterna falta de identidade brasileira. A derrocada de Macunaíma se dá por meio do desejo pelo que vem de fora (a portuguesa), o que lembra muito bem os aplausos ao especial novo do David Blaine: brasileiros aplaudindo uma exotização do país. Analiso aqui o especial tal como ele é: um produto audiovisual roteirizado. Primeiro é apresentado, na Rocinha, uma série de artistas de rua completamente exotizados e o neocolonizador americano vai extirpar todo o conhecimento que puder. Há uma espécie de glorificação no estilo de José de Alencar com Peri, em uma integração entre neocolonizador exotizador com artistas nacionais que é de péssimo gosto, como O Guarani. O pior de tudo é que é hábil do ponto de vista do audiovisual, a única paisagem urbana diferente de uma favela que aparece está bem ao fundo quando ele vai praticar no forte, o resto é favela e paisagem natural. José de Alencar fez a mesma coisa em O Guarani, pois buscou uma conciliação entre uma figura indígena exotizada com uma espécie de figura feudal europeia. Claro que aqui não temos um indígena e um europeu, mas um estadunidense que vem na cultura alheia aprender algo para fazê-lo de modo mais impressionante. Vale ressaltar que analiso aqui o roteiro em questão, pois é evidente que Blaine diz aprender algumas coisas que já sabia. E a nossa atitude? Como bons macunaímas, caímos na perdição do que vem de fora, nos mantemos colonizados, aplaudimos e achamos ótimo para a mágica brasileira. Sem contar a defesa clara ao ideal meritocrático quando mostram uma dupla de atletas que pratica high dive – esporte que é uma espécie de salto sincronizado, mas de alturas bem maiores – pulando de uma ponte porque no Brasil a plataforma de salto mais alta que tem é de 10 metros. Quer dizer, na falta de estrutura que o país fornece, a resiliência de pular da ponte faz dela campeã. O pior de tudo é que ao pesquisar high dive, se vê que normalmente tratam-se de competições patrocinadas pela red bull que monta estruturas temporárias em lugares de água natural, ou seja, o próprio esporte já não é feito em piscinas artificiais. Por meio dessas duas atletas que ficam responsáveis por treinar David Blaine a saltar pegando fogo da mesma ponte onde treinam, a meritocracia é um ideal estrangeiro e colonizador sendo implantado por meio da demonstração de um Brasil exótico artificial produzindo uma vanglorização às avessas, pois busca uma espécie de comunhão entre explorador e explorado que na verdade mantém o jogo de relações de poder tal como ele é. Pois é nesse senso acrítico que a mágica vai se inserindo ao buscar ser sempre uma versão pior do que vem de fora. Seguimos cometendo erros de português.

Revisão: Iuri Abizares

1: ANDRADE, Oswald, Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade

2: LISPECTOR, Clarice, Outros Escritos

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