“Uma das coisas maravilhosas sobre mágica é que ela te ensina a viver sem culpa. (One of the wonderful things about magic is it teaches you to live without guilt)”
Essa é uma frase de Eugene Burger tirada do DVD Magical Voyages, volume 1, durante a explicação da rotina de bolas de espuma, primeiro efeito que ele explica no vídeo logo após a performance de dois números. O contexto da frase se dá quando ele mostra que em situações nas quais deve fazer a apresentação do número sentado, deve permanecer com uma trampa o tempo todo na mão e diz que não sente culpa por isso soltando em seguida a fala que abre este artigo.
Do ponto de vista pragmático, naturalmente o que dá a primeira camada do que ele quer dizer, trata-se de como se comportar em relação ao movimento tramposo – momento no qual ocorre a técnica que fará o efeito mágico acontecer (ainda que não necessariamente simultâneo ao efeito mágico). Eugene parece consciente de que na naturalidade tem qualquer coisa de subjetividade, o que equivale a dizer que nosso inconsciente age somaticamente em nosso corpo, mudando o comportamento de como agimos ao fazer/preparar uma ação tramposa.
O fato dele escolher “guilt/culpa” como um recurso para falar de naturalidade, mostra que ele está mexendo com questões religiosas, não em um sentido místico do termo, mas trabalha com a ideia de que o domínio do simbólico age constantemente. Em uma conjuntura ocidental, falar de culpa parece remeter a como a lógica cristã pode agir em âmbitos que nem imaginamos. Para um desavisado, talvez tudo isso pareça uma grande viagem, mas estou analisando uma frase que aparece em um material intitulado, justamente, magical voyages. Além disso, Eugene Burger é formado em Yale, especialista em estudos comparados de religião e atuou como professor universitário nas mesmas áreas. Adepto da roteirização – escreveu muitos artigos sobre isso – a explicação não é à toa, o DVD – feito em parceria com Max Maven e tendo participações de mágicos como Jeff McBride e David Parr – é todo conceitual e mesmo as partes explicativas são performances. Quando Burger fala de culpa, fala de como o cristianismo age simbolicamente nas nossas ações, de forma somática, moldando nossos comportamentos.
Saindo do âmbito puramente pragmático, a frase acarreta também uma noção, dada de maneira muito sutil e perspicaz, de que há algo de anti-cristão na mágica. Me permitam um pouco de linguística, o sujeito da frase é a mágica, que é agente do verbo ensinar, enquanto o objeto é o interlocutor, aquele para quem Eugene se dirige, que pode ser ensinado pela mágica a viver sem esse aspecto inserido em nossas vidas pelo cristianismo. Sei que a mágica tem muitos ateus e que o leitor pode se sentir livre dessa análise que estou fazendo, mas o domínio religioso é simbólico e socialmente construído, o que equivale a dizer que a culpa no ocidente pertence mesmo àqueles que não tem fé nenhuma. Portanto, Eugene propõe que a mágica, arte anticristã, pode te ensinar a desconstruir a dominação cristã (ou parte dela) da sua subjetividade.
Resta analisar o porquê da mágica ser anticristã. Um mágico é um humano detentor de um segredo simulando um feito impossível. Está naturalmente intrínseco a ideia de poder, em palavras mais precisas que a minha, diz Eugene:
Eu acredito que toda mágica (não apenas rituais mágicos bizarros em que a cabeça da galinha é cortada, mas também números com moedas e cartas), passada, presente e futura, gira em torno da ideia de poder: o poder do mágico de produzir suas maravilhas e o impacto que essas maravilhas causam no público.
(I believe all magic (not simply bizarre magickal rituals wherein the chicken’s head is cut off, but also coin and card tricks) past, present and future, centers upon this idea of power – the power of the magician to produce his wonders, and the impact those wonders produce upon audiences.)¹
A ideia, portanto, de que um ser humano não divino pode produzir maravilhas, centrada na lógica de um poder, é naturalmente contrária ao âmbito simbólico-religioso imposto pelo cristianismo. Na lógica cristã, só o divino pode ter algum poder, enquanto o homem, vivendo no mundo físico do pecado é inibido de qualquer forma de mágica que ele possa produzir. A castração cristã é tornar detentor do poder só o divino, a mágica contraria isso.
Um cuidado deve ser tomado: a ideia de poder apresentada por Burger não deve enfatizar o ego – problema constante na mágica mundial, inclusive em âmbito histórico em que disputas e rivalidades entre mágicos fazem parte da realidade e da construção do imaginário. Pelo contrário, o poder em Eugene está no âmbito do relacionamento do mágico com os espectadores e não só na pura demonstração de um ser que detém um segredo que o outro não detém. Na verdade, a própria ideia “produzir suas maravilhas” só é possível se o mágico desconstrói sua pomposidade. Toda a teoria eugeniana tem uma abordagem de como se relacionar com o público, em uma espécie de apresentação que é um ritual com participantes e não simplesmente pessoas que assistem passivamente um ser superior que detém um segredo. Além disso, a mágica atua no âmbito do real, mas no simbólico é que está inserida a ideia de poder. Se este conceito aprofundar o seu ego, é na verdade destruidor. Vale ressaltar também que mesmo quando um mágico é vítima ou testemunha, ele tem acesso a um poder que normalmente não se tem, pois, na realidade externa, é sempre capaz de presenciar aquilo que um não-mágico não presencia e é um feito impossível.
Mas a mágica pode nos ensinar a viver sem culpa, a desconstruir lógicas cristãs inseridas em nossa psiquê, de tal maneira que podemos apontar uma contradição – dialética. Na trilogia dos diálogos (Diálogos sobre o segredo: uma análise marxista sobre a revelação de mágica; Diálogos sobre a originalidade: uma perspectiva marxista sobre a criação na mágica e Diálogos sobre a vestimenta: uma perspectiva marxista sobre os símbolos da mágica) apontei como a mágica é uma arte que tem dialogado e se aliado com as ideologias dominantes. Eugene Burger, contudo, parece nos mostrar com uma frase que há um caminho possível por meio da dissidência e da transgressão. Se – conforme essa análise semiótica e psicoanalítica que apresento – há algo na mágica intrinsecamente anticristã, a mágica atua de um lado em uma esfera dominante – capitalista, aliada de camadas sociais favorecidas e dos ideais da publicidade – e de outro com uma lógica interna que é dissidente – anti religiosa e não cristã. Nessa esfera contraditória, pode estar uma enorme potência de desconstrução artística, pois se nos apegarmos ao lado da mágica que é contra-corrente (tal como apresentei sobre a varinha como um símbolo de sátira da nobreza), talvez a mágica possa agir contrária aos ideais dominantes e, assim, ser mais relevante socialmente.
1: Mastering the art of magic, coletânea de booklets do Eugene Burger. O trecho está presente no Intimate Power, na coletânea p. 123.

