Existem diversas coisas, além de mágica, que a comunidade de ilusionistas pratica. Em geral, principalmente entre os prestidigitadores da categoria de close-up – mágica de perto, mágica de aproximação -, existe uma espécie de atração por mini-malabarismos: manobras com canivetes, ioiô entre outros. Mas definitivamente, a maior dessas tendências extra mágica é o cardistry – que acredito poder traduzir para os que não conhecem como “malabarismo com baralho”. Poucas áreas são tão atraídas pelas cartas como o ilusionismo.
É naturalmente fascinante: um par de mãos fazendo, geralmente de maneira muito suave, quando bem feito, em um ritmo muito constante com uma espécie de flow hipnótico. Muitas vezes o ponto fixo entra em jogo. Outras os chamados card shots em que o performer lança cartas de diversas maneiras diferentes. Os leques mais elaborados. Permitindo expôr um pouco de opinião: dos mini malabarismos é o mais bonito de todos. Vale esclarecer que quando digo mini malabarismo, não quero inferir nenhum aspecto de qualidade, só dizer que, se comparado ao malabarismo tradicional onde coisas como argolas, bolas e claves são jogadas ao alto, o tamanho é menor.
Mas a questão deste texto não é fazer um elogio ou uma crítica. Mas, afinal, qual é o papel do cardistry? A arte que já foi chamada de XCM (extreme card manipulation), nome que, ainda bem, caiu por terra, tem alguma potência de performance? Parece estranho que uma arte se consolide apenas para vídeo das redes sociais, já que é o meio no qual o cardistry mais se consolida.
Misturar cardistry e mágica é possível, mas a problemática já é bem desenvolvida. A função de um mágico é afastar qualquer possibilidade de explicação, como diz Ascanio, inclusive da habilidade do performer. O que equivale a dizer que demonstrar um enorme virtuosismo manual com as cartas atrapalha o assombro – efeito sempre desejado, uma vez que sem ele não há mágica. Não sou adepto de regras categóricas como seria afirmar que cardistry e cartomagia são necessariamente incompatíveis. Um bom exemplo de demonstração de habilidade sem estragar a mágica é o ato campeão do Yann Frisch, no qual diversos malabarismos com bola e caneca compõem a performance. O ato do francês tem uma personagem que justifica o excesso de movimentos, mas não é o que, em geral, vemos acontecer com os praticantes do mini malabarismo com cartas.
Mas qual o problema de uma arte se consolidar em vídeo? A problemática reside no fato de que cardistry é uma demonstração de habilidade manual, naturalmente sendo mais potente ao vivo. Em tempos de Inteligência Artificial, fazer um malabarismo de cartas apenas filmado, sem que a linguagem audiovisual seja realmente explorada, é pouco artístico. O mesmo vale para qualquer arte performativa por vídeo. Acontece que o cardistry não se consolida em nada, nem como arte cênica, nem como arte performática. Normalmente é mero artifício de um mágico que a usa de maneira pouco refletida atrapalhando o resultado final desejado – como dito acima, o assombro.
Mas quais seriam os caminhos para o cardistry caber em um ato realmente performativo deixando de ser só uma demonstração habilidosa para vídeos? Uma personagem obsessiva, como a de Frisch, que usa os movimentos de forma delirante? Usar como uma gag dizendo que vai fazer um movimento muito simples e ser algo muito elaborado? Muitas perguntas, poucas respostas, isso porque o cardistry não se consolida de maneira artística.
A reflexão final é que é necessário a existência de um ato de cardistry. É impossível dar uma receita de como isso se consolidaria na prática: pode ser dramático, humorístico, muito bem ritmado com a música como uma espécie de dança. O problema é que cardistry não existe como arte, virou um mero artifício do qual geralmente os mágicos se utilizam de forma a atrapalhar o próprio objetivo necessário para a mágica existir. O cardistry, talvez, precisa se consolidar como algo próprio e aproveitar sua potência ao máximo, para que se possa extrair algo de artístico dessa prática e, possivelmente, evoluir no âmbito da performance ao vivo. A existência de um ato de cardistry é fundamental para lapidar um melhor entendimento, prático e crítico, do lugar do cardistry no âmbito das artes performativas.

