Nesta coluna, no artigo Diálogos sobre o segredo: uma perspectiva marxista sobre a revelação de mágica, já abordei o fato da dimensão do segredo – realidade interna, âmbito do invisível – fazer parte de uma riqueza da mágica cujo objetivo é nunca ser percebida pelo espectador. Parece óbvio em um primeiro nível, sem segredo, sem assombro – termo canônico para o efeito que a mágica causa em quem assiste – e, portanto, sem mágica. O que equivale a dizer, que o mínimo que um mágico tem de fazer é ocultar essa dimensão, mantê-la invisível. Essa parte já acarreta dificuldades o bastante: diversos períodos de treino em frente a um espelho ou câmera para ver se está tudo certo, trabalho da memória mental e muscular, trabalho psicológico, trabalho de ritmo e tantas outras instâncias que não seria possível enumerá-las aqui, dada a diferença das diversas faces que uma realidade interna pode ter.
Sendo assim, manter a realidade interna de um efeito/ato é o mínimo e já difícil o bastante. Já no artigo Intranscendência lógica em Goupil e Kosmao, citei um pouco da discussão que entrarei agora. A ideia dessa dificuldade no artigo reside no fato que mesmo em um espetáculo de renome internacional, se enxerga que mágica não é fácil. Primeiro vamos lembrar as palavras de Ascanio que também citei no texto em que critico o espetáculo idealizado por Étienne Saglio:
“[Tamariz:] Como vê o futuro da mágica? Crê que será a mágica de mesa e para um público muito seleto?
[Ascanio]: (…) Para contestar essa pergunta é preciso ter em conta uma série de dados (…).
Creio que temos de dividir duas classes de mágica: a mágica-mágica e a pseudo-mágica. A primeira, por suposto, a mais rara e difícil, e quase a única que deve receber o qualificativo de artística. Esta se produz – aqui está a ideia principal – quando o público resulta estremecido e desconcertado ao chocar de bruços com o mistério quase absoluto. Essa ideia do público estremecido e desconcertado, tem sido muito bem desenvolvida por Tamariz, com a ideia da tensão mágica e a queda da tensão, quando se chega na culminação e vê que não se pode mais seguir, isso, precisamente, é o impacto artístico da mágica. O efeito da rotina é inesperado, brilhante e completamente incompreensível. Não cabe – especialmente – à socorrida explicação da habilidade manual do mágico, das suas roupas, da preparação do equipamento ou do cenário onde atua. Então, essa é a ideia, essa é a ideia chave: a alma do espectador vibra ao palpitar pelo mistério. Quer dizer, quando o espectador pensa “aqui tem algo que não pode ser, tem algo que não posso compreender, tem algo misterioso”, quando vibra ao palpitar pelo mistério é quando se atinge o efeito mágico.
Então, sua primeira reação ante o prodígio não é rir nem aplaudir, mas sim um “Oh!” de assombro e incredulidade.
A pseudo-mágica segue sem conseguir um resultado de mistério e às vezes nem sequer persegue o mistério. É a mágica do humor, da demonstração de habilidade, da física recreativa ou como disse Marré, “das coisas curiosas”. Faz coisas curiosas, mas não é mágica. Toda a impressão que produz no público é, em geral, a de uma sensação simplesmente agradável ante o curioso da exibição ou ante a dificuldade do trabalho do artista, ou ante sua simpatia pessoal, porém o inexplicável, o prodigioso, o misterioso, se destacam pela ausência.¹
O trecho em negrito acima resume bem toda a questão: para ter o efeito mágico em seu ideal, os espectadores precisam não conseguir explicar em nenhuma hipótese o que aconteceu, em outras palavras, toda e qualquer questão que os leva a deduzir o segredo, retira o momento mágico. Na mesma linha, Harada diz que a “arte mágica produz efeitos sobrenaturais e impossíveis com o fim de provocar a sensação de mistério, intriga, maravilhamento. Ela coloca o espectador momentaneamente em um estado pré-lógico no qual tudo parece ser possível.”
Algumas conclusões podem ser tiradas dos dois teóricos. Ambos assumem a ideia de um momento, esse que Harada chama de pré-lógico, onde o impossível é factual. Isso pode durar uma fração de segundo e logo depois o espectador lembrar que ali tem um ser humano usando de artifícios técnicos para criar essa sensação. Mas em hipótese alguma, o espectador pode fazer alguma dedução de como aquilo foi feito. Ele pode saber que tem algo ali, mas não pode deduzir em que momento aquilo foi executado ou qualquer coisa do tipo. E aqui reside a maior dificuldade da mágica: ele não pode deduzir falsamente o que o mágico fez. O que equivale a dizer que se ele encontrar algum método, mesmo não sendo aquele executado pelo ilusionista, a mágica também falhou.
E em termos de mágica, é isso que torna a mágica-mágica rara e difícil e a pseudo-mágica comum. O mais difícil da mágica não é ter uma técnica limpa e ocultar o segredo daquilo que se executa. O mais difícil da mágica é desmantelar todas as possibilidades que possam surgir no pensamento de um espectador e fazer com que ele não entre nesse estado pré-lógico.
Aqui podemos inclusive refletir sobre a mágica visual – tendência nas competições mais atuais. Quando uma mágica é extremamente visual, ela corre o risco de causar o que vou chamar aqui de falso assombro. Diante de uma mágica visual, será comum o mágico ouvir do espectador uma reação impactante, mas devemos nos questionar se essa reação é de fato o assombro verdadeiro. Porque o impacto do efeito visual pode ser enganoso, uma vez que o espectador pode reagir e perceber o segredo logo depois – ou deduzir um da própria cabeça que não é o segredo feito, mas que leva o número ao mesmo fracasso de um segredo percebido. Isso ocorre porque os números visuais têm um enorme impacto, justamente, visual, próximo ao impacto de um efeito especial ao vivo. Assim, é capaz que uma plateia inteira reaja com “oh” quando uma carta desaparece flutuando em um palco, mas logo em seguida pode-se chegar muito fácil ao método – verdadeiro ou falso – de como aquilo é feito (me refiro a um efeito do ato de Francesco Della Bona, último grand prix do campeonato mundial de mágica). Nesse sentido, essa foi minha principal crítica ao espetáculo Goupil e Kosmao, que exemplifica bem o que estou falando aqui: o destaque está toda para uma raposa de pelúcia feita com pele de verdade que se mexe e a plateia reage constantemente ao feito, mas se trata de falso assombro, porque muito facilmente se chega ao método.
Em síntese, fazer mágica é difícil não só porque você tem de ocultar o segredo daquilo que você faz, mas também desmontar toda a possibilidade de explicação que um espectador pode vir a ter de como um número é feito. E a tradição teórica da mágica têm mostrado isso há muito tempo, mas é um problema ainda não superado em sua completude pela arte mágica. Quando digo que não foi superado, quero dizer que a maior parte das apresentações de mágica – seja em vídeo, em teatro, em intervenções close up ou qualquer outra manifestação – não atingem esse ponto. O que proponho aqui, é que comecemos a analisar a questão do falso assombro, porque é muito fácil causar um “oh” inicial, mas a permanência da não explicação de um segredo – falsa ou verdadeira – é onde reside a maior dificuldade da arte. E a tendência das competições, ao que parece, tem sido o desenvolvimento de uma mágica na qual se pauta no falso assombro.
1: The Magic Of Ascanio, p. 90, tradução e grifos meus.
2: HARADA, Ricardo Godoy. A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral p. 17.

