Nos últimos meses, cada vez que o Adoro Mágica publica críticas de espetáculos, surgem reações indignadas: “pra quem é esse texto?”, “isso não ajuda a mágica”, “é só mágico sendo mágico”. Este editorial responde com calma e diretamente, porque a crítica especializada de mágica é fundamental para o desenvolvimento e para a compreensão do fazer mágico no Brasil. Spoiler: sem crítica, a mágica não se consolida plenamente como arte.
Antes de tudo, é importante separar os termos. Reclamação é quando alguém diz “não gostei”, “foi ruim”, “não vale o ingresso”. Feedback é quando um artista fala para o outro, em privado, algo como “no seu número tal, talvez seja melhor trocar a música, ajustar o tempo, revisar o texto”. Crítica, do jeito que buscamos praticar aqui, é outra coisa: é um gênero de texto que descreve, interpreta e avalia um espetáculo a partir de critérios (estrutura, ritmo, unidade, encadeamento de números, relação com o espaço, coerência com a proposta anunciada, etc.). Isso coloca essa obra dentro de uma conversa maior sobre a arte mágica. A crítica não é um bilhete privado ao artista, não é um desabafo, não é um “textão” para falar mal. É um texto público, escrito para leitores, que usa um show específico como ponto de partida para discutir como se faz mágica hoje, o que funciona, o que não funciona e por quê.
Muita gente pergunta: “Afinal, para quem é a crítica? Para os mágicos lerem e pensarem ‘que bom que foi uma merda’? Ou pro público leigo desistir do próximo show?”. A resposta é que a crítica é para todos esses públicos ao mesmo tempo. Ela é para os espectadores curiosos, leigos ou não, que querem entender melhor o que estão vendo quando assistem a um show. A crítica oferece vocabulário, contexto e referências, ajuda a perceber que existem formatos diferentes, questões de encenação, escolhas de linguagem e de ritmo, e que nem todo espetáculo se resolve só pela presença de números impressionantes. Ela é também para os próprios mágicos, não como um manual de “faça assim”, mas como um espelho da cena: mesmo quem não viu o show pode ter uma resenha bem argumentada e se perguntar se o seu espetáculo tem unidade, se aproveita bem o espaço, se depende demais de improviso para contornar problemas de estrutura. E, por fim, a crítica é para a história da mágica brasileira: textos críticos de hoje serão, amanhã, documentos que ajudem a entender como se fazia mágica em determinada época, quais eram os vícios, as qualidades, as experimentações e os formatos em jogo.

Editoria de arte
Toda forma de arte que se consolida como gênero e tradição se apoia em um tripé: quem faz (os artistas), quem consome (o público) e quem olha, escreve, analisa e organiza o sentido disso tudo (a crítica). É o que aconteceu com o samba e com o rap brasileiro, por exemplo: há produção forte, há público e há uma fortuna crítica jornalística e acadêmica que olha para essas expressões, descreve suas características, discute suas transformações e registra seus marcos. Resultado: viraram gêneros com identidade própria, com história, com clássicos, com debates internos. Quando olhamos para a mágica, vemos um cenário diferente: existem artistas, existe público, mas a crítica olha pouco, quase nada. Apesar de existir no “mundo real”, não se consolida com a mesma força no mundo cultural, esse espaço mental onde se organiza o que é relevante, o que marca época, o que vira referência. Se quisermos que a mágica deixe de ser vista apenas como entretenimento descartável de eventos particulares, de festas infantis e do meio corporativo e seja reconhecida como uma arte com linguagem própria, precisamos admitir que a crítica especializada não é um luxo: é parte da estrutura que sustenta essa transformação.
Uma das críticas que mais recebemos é a de que “a crítica não ajuda a divulgar o show, nem a arte mágica, nem a percepção do público, nem os mágicos”. Isso parte de uma visão restrita de divulgação, como se divulgar fosse apenas elogiar e empurrar o público para a bilheteria. Releases, flyers e anúncios existem para vender ingresso e falar bem; a crítica opera em outra camada. Ela divulga de um jeito diferente: coloca o espetáculo em pauta, faz com que se fale sobre ele, inclusive entre pessoas que nunca tinham ouvido falar daquele show. Mesmo um texto negativo faz o espetáculo existir no debate: quem concorda e quem discorda passa a ter um referencial, uma forma de nomear impressões.
Ao contrário da reclamação, a crítica não se resume a “não gostei”: uma boa resenha aponta acertos e problemas, descreve contextos, articula conceitos, explica escolhas. O fato de alguém ter estado no show, ter se divertido e sentido que “foi bom” não significa que não existam fragilidades na construção do espetáculo. A plateia pode se divertir apesar de problemas de ritmo, de uso do espaço, de encadeamento de números ou de discrepância entre a promessa feita na divulgação e a entrega no palco. O papel da crítica é justamente nomear esses pontos. Se a sensação é a de que “só falou mal”, talvez o incômodo esteja menos no texto em si e mais na nossa falta de hábito de lidar com uma leitura que não é apenas elogio.

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Não basta o público gostar. O pensamento crítico opera pelo viés da razão e não da emoção. O que equivale a dizer que o critério é estético, em um ponto de vista filosófico. Ou seja, se olha a forma, o conteúdo e como os dois se entrelaçam. Se a reação do público for o único critério, teríamos o fato que Michel Teló é melhor que Bach. Não há nada de errado em gostar de sertanejo e não gostar de música erudita, mas quando se analisa pelo viés estético de um lado temos um músico puramente comercial e de outro um que revolucionou a maneira de fazer música. É nesse viés que a crítica deve atuar, não significa que a reação do público não é importante, mas esse não pode ser o único critério do pensamento quando o assunto é arte.
Talvez a frase que melhor revele o problema de fundo seja a que diz que “a nossa comunidade precisa de mais incentivo e não de mais colegas falando mal”. Aí aparece com clareza uma confusão entre crítica e fofoca. Em uma sociedade pouco acostumada à palavra escrita como espaço legítimo de debate, tudo vira ataque pessoal. Se um texto aponta problemas, o autor é taxado de invejoso. Se discorda da sensação da maioria, vira o chato que quer pagar de intelectual. Se fala mais de estrutura do que dos números de mágica, “não ajuda em nada”. Só que a crítica não é sobre a pessoa do artista, e sim sobre a obra que foi apresentada. E ela não existe para ser coaching gratuito; existe para registrar, argumentar, propor olhares, comparar, tensionar, educar o público e a própria classe artística.
É verdade que a comunidade mágica está saturada de colegas falando mal, mas quase sempre pelas costas, em grupos fechados, sem critério, sem responsabilidade, sem assinatura. Crítica publicada, assinada e argumentada é justamente o oposto disso: alguém coloca seu nome, organiza o pensamento, assume o que está escrevendo e se abre à contestação pública.
Também temos recebido comentários dizendo que determinadas resenhas estariam “mal escritas” ou “confusas”. É perfeitamente legítimo: a crítica também pode e deve ser criticada. Se você acha que um texto falhou na análise, usou critérios ruins, pesou a mão em um ponto e ignorou outro, ou simplesmente escreveu de forma pouco clara, a melhor resposta não é pedir o fim das críticas, mas produzir contrapontos e debates. Escreva outra leitura sobre o mesmo show, apresente argumentos, proponha outros critérios. O que não faz sentido é usar o fato de uma crítica ser imperfeita como justificativa para extinguir a prática da crítica como um todo. No Adoro Mágica, estamos aprendendo enquanto fazemos: vamos errar, ajustar o tom, refinar critérios, ouvir quem discorda. O que não vamos fazer é abrir mão do direito e da responsabilidade de olhar criticamente para a mágica que se faz no país.
Se acreditamos que a mágica é arte, precisamos aceitar que nesse campo também vai ter textos que elogiam, textos que apontam falhas, textos que dividem opiniões e textos que eles mesmos se tornam objetos de crítica. É assim com cinema, teatro, literatura, música e gastronomia. Se quisermos que a mágica deixe de ocupar apenas o lugar de entretenimento periférico e se consolide como linguagem artística com história, tradição, repertório e memória, a crítica especializada é parte indispensável desse processo.
O Adoro Mágica não quer ser “o blog que fala mal de mágicos”, e sim um espaço de notícia, de memória, de registro e, sim, de crítica. Se você discordar de uma crítica nossa, ótimo: significa que o texto cumpriu outra função essencial, que é provocar o pensamento. Só pedimos que a resposta não seja “parem com as críticas”, mas “vamos discutir melhor a mágica que a gente faz”. É assim que a arte mágica cresce.
Coletivo Adoro Mágica
O coletivo Adoro Mágica é composto por Henri Sardou, Everton Machado, João Biolchi, Gui Antônio, Guilherme Gomieri e Flakes.

