Crítica

Num Passe de Música e a delicadeza do impossível

Neste último final de semana voltou em cartaz o espetáculo Num Passe de Música de Ricardo Malerbi e Flavio Tris. Trata-se de um espetáculo cujo mágico apresenta números enquanto o músico apresenta canções, sempre com ambos interagindo entre si de tal maneira que formam uma espécie de unidade performática na qual Flavio chega a fazer mágica e Malerbi a tocar um bandolim. No quesito mágica a apresentação é formada de diversos clássicos, mas que ganham uma roupagem original compondo um leque de variedades bastante único. De maneira nenhuma isso quer dizer que o novo esteja de fora, pois em diversos momentos a teoria moderna da mágica entra em jogo: a cruz de olhar slydiniana em um momento da rotina de moedas é um dos exemplos que, somada à técnica apurada de inúmeras sutilezas, cria um dos pontos altos do ponto de vista manipulativo.

Conceitualmente, o espetáculo pode ser visto como constituído de diversas camadas. Se a primeira camada já basta para um espetáculo divertido, intrigante, delicado e emocionante, parece que além da superfície cada número-canção guarda algo mais. Exemplos são necessários para ilustrar o que este texto fala e vale a ressalva de que a reminiscência compõe sempre a mágica, então os fatos aqui podem não ser exatamente a concreção daquilo que ocorreu, mas sim daquilo que se compôs na mente daquele que escreve, de toda forma trata-se da constituição de como funciona quando falamos de um efeito de mágica. 

Em determinado momento do espetáculo, Ricardo materializa uma bolha de sabão, iniciando uma rotina de bola de contato – malabarismo cuja bola desliza, dando a ilusão de pontos fixos de maneira que praticamente parece que ela se mexe sozinha. Em uma primeira camada, o fato por si só é impressionante. Depois, Flavio parte para determinadas imagéticas, como por exemplo “essa bola é a terra”, terminando com “olha para si” com o mágico indo até o músico, se abaixando e olhando a bola de cristal como se fosse um espelho. A terra se torna espelho – ou o é – de tal forma que olhar para si exige lembrar o lugar onde estamos em seu todo, em uma relação que dialoga com algo como “eu sou um todo com partes, ao mesmo tempo que sou parte desse todo que é a terra”. É uma espécie de chamado existencialista, onde olhar para si concretamente – a figura do espelho – guarda em seu interior olhares de outras ordens, nos empurrando a um chamado: eu existo, eu estou aqui, eu estou na terra, olhar a terra é me olhar, me olhar é olhar a terra.

Na mesma direção, um número com uma canção sobre os animais nos chama a olhar os seres da terra, não sem excluir os humanos. Mostra os mamíferos e nos lembra que biologicamente também compomos essa espécie, com fotos típicas da didática biológica que nos lembra: somos compostos de células, músculos, ossos etc. É um chamado completo para termos o máximo de consciência sobre como somos formados, um mecanismo complexo igual a outros animais. Ao mesmo tempo, estamos em um teatro, vendo arte e pensando sobre isso, somos levados a nos lembrar: somos humanos. 

Tal tema teria o perigo de cair em uma auto-ajuda barata e acrítica, mas não é o caso, como nos lembra a mensagem do refrão da rotina de moedas mencionada acima: Queremos dinheiro, mas não sabemos para quê. O final nos lembra da lição de McBride de que a mágica é um ritual que tem participantes e não espectadores, terminando com o público todo cantando uma nota em uma espécie de abracadabra coletivo e uníssono necessário para que o último efeito do show aconteça.

Os exemplos poderiam ser inúmeros e foram escolhidos os menos mágicos propositalmente, pois o ilusionismo é uma arte que exige a surpresa e a intenção desta crítica é instigar e não estragar a experiência completa. Fato é que Num Passe de Música tem uma forma bastante sui generis, uma espécie de poética da delicadeza cuja existência humana é apenas um dos fatores enriquecedores de um espetáculo no qual da primeira camada até a mais profunda, incluindo a que aquele que escreve não acessou, funciona com enorme potência diante do público. Forte e delicado ao mesmo tempo, o espetáculo é sem dúvida uma das melhores expressões brasileiras quando o assunto é mágica. Num Passe de Música está em cartaz aos sábados e domingos, às 16h, com retirada de ingressos uma hora antes, gratuito, no Teatro Cacilda Becker, em São Paulo capital.

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