“Me golpeou”. Essas foram as palavras que usei para descrever o espetáculo Goupil e Kosmao, criação de Étienne Saglio, o nome expoente da Magie Nouvelle. A performance é uma espécie de sátira ao mágico clássico, com uma raposa feita em pele de verdade que ganha vida, andando pela cena como uma marionete sem fios. O destaque está todo na raposa em um jogo com o mágico ao estilo Branco e Augusto ou – para usar uma referência da mágica – Voronin. Cada vez que a raposa andava em cena e fazia alguma coisa, era uma espécie de transcendência para mim, meus olhos brilhavam, eu me senti mais ou menos no estado pré-lógico que a mágica exige para existir. Mas isso foram sentimentos e esta é uma coluna de crítica, sendo assim, preciso dar voz à razão, portanto, vamos à análise.
Não nego que sempre tive fascínio por contemporaneidades, dedicando boa parte do meu tempo à leitura de manifestos e estudo dos movimentos de vanguarda. Nesse sentido, a Magie Nouvelle sempre me chamou atenção, pois visa um vanguardismo, soma-se a isso o fato de vir da França, lugar que sempre abrigou vanguardas. Nessa coluna, já escrevi antes que considero Ricardo Harada o melhor teórico da mágica e ver algo de Magie Nouvelle, ainda que não ligado à obscuridade comum ao estilo de Étienne, tinha para mim um estatuto de averiguação, pois o mestre da junção de mágica e teatro escreve que a Magie Nouvelle
“busca novas possibilidades artísticas, fundindo arte mágica e outras manifestações, seguindo o exemplo do bem sucedido Novo Circo. O movimento reage à estagnação da mágica enquanto forma de entretenimento familiar, rompe com a tradição e renega a paternidade de Robert-Houdin (COPPA, et al. 2008, p.33-60), propondo a ruptura com a mágica tradicional por meio da fusão com outras artes. Em geral, desejam tornar a mágica mais ‘poética’, fazendo uso da dança contemporânea, do circo, de novas mídias e do próprio teatro, além de seguir a cartilha deixada pelas vanguardas históricas. […].
Ao tomar a estagnação da maioria dos praticantes da arte mágica como um parâmetro a ser combatido, corre-se o risco de incluir nesse grupo também as vozes dissonantes, de uma minoria constituída dos verdadeiros artistas e criadores da arte mágica. […] O movimento acaba promovendo, em muitas de suas criações, um retrocesso nos avanços conquistados pela mágica, ao não discernir sua especificidade daquela de outras modalidades circenses. […], este movimento se equivoca ao romper com o passado ignorando-o.¹
Eis a minha encruzilhada dialética ao fazer esta análise: entre o sentimento e a razão, numa espécie de contradição sobre ser um bom espetáculo ou não, preciso lembrar de algumas palavras de Ascanio em entrevista com Tamariz, já peço perdão, pois me alongarei nas citações, escutemos esse (outro) mestre, palavras mais válidas que a minha, eu prometo que vale a pena:
“[Tamariz:] Como vê o futuro da mágica? Crê que será a mágica de mesa e para um público muito seleto?
[Ascanio]: (…) Para contestar essa pergunta é preciso ter em conta uma série de dados (…).
Creio que temos de dividir duas classes de mágica: a mágica-mágica e a pseudo-mágica. A primeira, por suposto, a mais rara e difícil, e quase a única que deve receber o qualificativo de artística. Esta se produz – aqui está a ideia principal – quando o público resulta estremecido e desconcertado ao chocar de bruços com o mistério quase absoluto. Essa ideia do público estremecido e desconcertado, tem sido muito bem desenvolvida por Tamariz, com a ideia da tensão mágica e a queda da tensão, quando se chega na culminação e vê que não se pode mais seguir, isso, precisamente, é o impacto artístico da mágica. O efeito da rotina é inesperado, brilhante e completamente incompreensível. Não cabe – especialmente – à socorrida explicação da habilidade manual do mágico, das suas roupas, da preparação do equipamento ou do cenário onde atua. Então, essa é a ideia, essa é a ideia chave: a alma do espectador vibra ao palpitar pelo mistério. Quer dizer, quando o espectador pensa “aqui tem algo que não pode ser, tem algo que não posso compreender, tem algo misterioso”, quando vibra ao palpitar pelo mistério é quando se atinge o efeito mágico.
Então, sua primeira reação ante o prodígio não é rir nem aplaudir, mas sim um “Oh!” de assombro e incredulidade.
A pseudo-mágica segue sem conseguir um resultado de mistério e às vezes nem sequer persegue o mistério. É a mágica do humor, da demonstração de habilidade, da física recreativa ou como disse Marré, “das coisas curiosas”. Faz coisas curiosas, mas não é mágica. Toda a impressão que produz no público é, em geral, a de uma sensação simplesmente agradável ante o curioso da exibição ou ante a dificuldade do trabalho do artista, ou ante sua simpatia pessoal, porém o inexplicável, o prodigioso, o misterioso, brilham por sua ausência.²
Aqui acredito estar a falha do espetáculo. É esteticamente bonito uma pelúcia realista ganhar vida e se mexer magicamente como uma marionete, mas aí reside a questão, é muito fácil se aproximar do princípio de como tudo funciona. A sátira ao mágico clássico entra bem, mas soma-se a isso movimentos sujos, números que vazaram e a gente chega em algo fofo e sem potência mágica. Funciona porque é bonito, mas não passa disso. Toda a explicação está nas partes destacadas das palavras de Ascanio. Harada está correto, é um rompimento gratuito com a tradição da mágica que a faz perder a sua especificidade, o principal não tem no show, ou tem muito pouco: falta assombro. A alma não estremece diante do prodigioso, pelo contrário, se afofa diante de uma raposa de pelúcia bonitinha e realista que se mexe como uma marionete sem fios, mas que muito facilmente se entende o princípio, ao menos em geral.
Uma olhada na descrição do SESC diz que “Saglio traz ao palco também recursos de animação – uma homenagem aos estúdios Tex Avery (criador de personagens clássicos como Pernalonga e Patolino) e Pixar (produtora de sucessos como Toy Story, Procurando o Nemo, Ratatouille e Up – Altas Aventuras)”, o que demonstra um avizinhamento com a cultura americana. Isso talvez explique a minha palpitação, já que infelizmente na infância me botaram goela abaixo esses lixos que causam ao cérebro um dano parecido com o que comida fast food causa ao corpo. É a ideologia dominante dominando, ainda bem que temos a razão e o senso crítico, respaldado nesses pensadores que aqui citei e pude, assim, reconhecer que o espetáculo é ruim.
Para concluir, devo dizer que o título desta crítica é exatamente a sensação que resta do espetáculo: ao invés de transcender pelo mistério, eu destranscendi, intranscendência, prefixos de negação que a lógica, nesse caso ainda bem, me causou. insublimação – intranscendência – destranscender, três palavras chaves (e neologismos chaves) que explicam resumidamente a minha primeira experiência com Magie Nouvelle. Mas eu poderia defender que a disrupção – em certa medida – do assombro importa menos do que o resultado final em um espetáculo que rompe com a tradição satirizando o mágico clássico, sendo assim, talvez só tenha preferido cumprir o papel de crítico cuja rejeição dialeticamente afirma (como sempre afirmou) o estatuto de vanguarda da Magie Nouvelle, o crítico é um fingidor.
1: HARADA, Ricardo Godoy. A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral p. 155. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1618657. Vale a pena dizer que muita coisa mudou na própria Magie Nouvelle desde que o Harada escreveu essa tese, mas a crítica ainda parece, em algum nível, se enquadrar.
2:The Magic Of Ascanio, p. 90, tradução e grifos meus.