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Falta de comercialização de cultura e venda de entretenimento: até quando a mágica será um mero produto acrítico?

“Por ser marginalizada e incompreendida, muitas correntes [de mágica] criaram mecanismos internos de legitimação numa tentativa de se autonomizar das demandas do show business. Surgem associações, competições e congressos para mágicos. A mágica gradualmente se fecha em si mesma promovendo um fenômeno singular no campo das artes performativas. Surge a “mágica para mágicos” e “mágica para profanos”. Este fechamento em si mesma, promoveu um maior afastamento da mágica em relação ao mundo e à cultura, preferindo se esconder atrás das muralhas erigida por seus próprios praticantes, ao enfrentar as dificuldades e desafios do mundo contemporâneo. Como uma serpente alimentando-se da própria cauda, a mágica, encerrada neste panorama, corre o risco de se tornar obsoleta.¹”

É nítido que não é raro a mágica de competição ser de qualidade do ponto de vista dos mágicos, todavia alguma coisa se difere quando isso enfrenta o mundo real. São comuns os casos nos quais atos bem qualificados com bons resultados em competições ao redor do mundo viram currículo para que profissionais atuem no mercado corporativo engavetando tais performances pela falta de espaço de atuação que o mercado proporciona para este estilo. 

O perigo do ensimesmamento atua, nesse sentido, como um fator contraditório no qual de um lado o que sobra é a venda para a própria comunidade mágica e do outro resta a venda mercadológica para aquilo que melhor vai pagar, mesmo que isso signifique desculturalizar esteticamente o feito artístico. Inclusive, a mágica parece ser nas artes performativas a que mais tende a sucumbir ao capital. Essa característica faz com que o ilusionismo – diferente da maioria das outras artes performativas – seja uma arte acrítica e não politizada cujo ensimesmamento é uma defesa que contribui para esse caos em que a mágica se insere. Se por um lado a mágica é uma arte menor, por outro ela é pouco transgressora e dissidente. O teatro, pelo contrário, costuma estar no balaio das artes maiores, mesmo com todos os percalços orçamentários, sendo não raramente dissidente, ou seja, contra a ideologia dominante.  

Como uma arte pode estar tão condizente com a ideologia dominante e o capital? É um contrassenso em qualquer visão crítica que se preze, basta olhar para qualquer movimento que um dia foi vanguarda, como estes operam quase sempre de uma forma contrária à estética e ideologia dominantes. 

O desafio, entre outros, é como atingir um público não-mágico com os atos que se destacam em competições, sem que estes caiam na história como currículo para outros trabalhos. Vale o esclarecimento que isso não quer dizer que o artista está preso com o ato para sempre, mas que possa ao menos aproveitá-lo por um tempo justo. Naturalmente há exceções, como Vik e Fabrini que atuaram por mais de vinte anos com o mesmo número. Mas não podemos deixar que isso seja um feito único na história da mágica brasileira.

Harada demonstra no parágrafo de entrada que a mágica se fecha para o mundo e para a cultura, ou seja, é uma arte acrítica e refratária à ideologia dominante, é pouco combativa. Se como arte, não há um tensionamento no qual questionamentos sejam colocados para traçarmos um olhar sobre questões mais profundas, seja no campo político, psicológico ou estético, a previsão haradiana se realizará e a mágica terminará com duas frentes: um fim em si mesma e um fim mercadológico cuja essência é uma espécie de entretenimento baixo sem culturalização.

Now you see me é um bom exemplo de como a mágica se insere em eixos comerciais pouco sérios do ponto de vista crítico. Aparentemente é um filme lucrativo, já que estreará seu terceiro volume. A questão que tange é que os dois primeiros filmes não têm nada de artístico, pois ambos tratam-se de roteiros hollywoodianos que atuam em uma esteira da idealização de uma mágica que não existe na vida real. Os feitos heroicos podem ser vistos como uma valorização da arte, mas acontece que o oposto se realiza. Em feitos pouco teatrais para dar conta da linguagem cinematográfica, o que se cria é uma imagem não real do que um mágico é capaz. O maior problema está na esteira de que os feitos que os mágicos fazem na vida real, muitas vezes são mais artísticos atingindo outras expressões estéticas, mas o filme atua em uma deseducação ao fazer o espectador esperar algo que vai decepcioná-lo ao não se realizar. Assim, o efeito estético da mágica, que é potencialmente muito mais rico do que o mostrado nos filmes, torna-se inválido na visão dos espectadores que os viram. 

Mas é natural que a mágica seja a arte escolhida para esse tipo de representação, porque a acriticidade que o ilusionismo tem permite que esse cenário o aproprie. Além disso, o cinema hollywoodiano é uma expressão mercadológica capitalista que visa mais o lucro que o ideal estético, o que contribui para o argumento de que a mágica costuma estar condizente com a ideologia mercadológica dominante. Mesmo quando a mágica atua culturalmente, ou seja, quando ela é culturalizada, ela ainda é acrítica, pois não há nenhuma dissidência. O máximo que a arte tem conseguido é usar a linguagem para a criação de efeitos plásticos sem uma reflexão sobre o mundo real e a cultura, como diz Harada, no trecho citado acima, ao discorrer sobre o ensimesmamento.

1: HARADA, Ricardo Godoy. A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral = Attempting the impossible : the art of conjuring as poetic material of the theatrical scene. 2012. 298 p. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1618657. Acesso em: 28 abr. 2025. 

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