Artigo

DIÁLOGOS SOBRE O SEGREDO: UMA PERSPECTIVA MARXISTA SOBRE A REVELAÇÃO DE MÁGICA

É meu décimo primeiro texto para este site e para abrir a nova dezena, trarei ideias que reafirmam e contrariam ao mesmo tempo coisas que já foram ditas. Para isso, decidi refletir sobre algo intrínseco na mágica: o segredo. A poética – linguagem, significante, forma – da mágica é composta em três instâncias 

“paralelas, indissociáveis e, ao mesmo tempo, distintas. A primeira dimensão é relativa ao percebido ou aquilo que o espectador lê, interpreta e absorve; a segunda dimensão diz respeito ao não percebido, ou seja, todas as causas imperceptíveis à testemunha do fenômeno; por último, a recriação do acontecimento mágico na memória do espectador. Em outras palavras, a mágica se divide em três universos: o visível, o invisível e a reminiscência”¹

 Sendo assim, o segredo – a dimensão do invisível – é indissociável daquilo que compõe a maneira como o ilusionismo é criado e apresentado. Nesse sentido, há um problema de antemão, o fato de que a riqueza completa de um número, em tese, nunca deve ser completamente percebida, pois a relação com o mistério e o assombro, depende disso para acontecer. Ora, se a forma da mágica é composta pelo segredo que compõe parte de sua riqueza, mas ao mesmo tempo esse não deve ser percebido para o assombro ocorrer, temos de antemão uma contradição – dialética – na qual a mágica depende de ocultar parte de sua complexidade para que se atinja o objetivo.

Para continuar no encalço do Festival Internacional SESC de Circo, já publicado aqui duas críticas, sobre os espetáculos Artifaces e Goupil e Kosmao, quero agora entrar nas entranhas e dialogar com o texto de Alê Primo³, publicado no catálogo. Muito bem diagramado, em formato livro, contém as informações – sinopse, ficha técnica etc – de todos os espetáculos que houveram e alguns textos sobre as diversas expressões artísticas que aconteceram entre 8 e 24 de agosto deste ano (2025). Quem assina o texto sobre mágica é Alê Primo, se chama “O Segredo da Ilusão e a Ilusão do Segredo”. O debate é absolutamente pertinente, segundo Alê uma questão emerge: “como podem as artes mágicas se desenvolverem, como novas mágicas e mágicos pode [sic] se formar, quando tal comunidade se esconde no sigilo?”; não sem completar que “A mágica não tem como preocupação crescer. É uma arte para poucos. É uma prática seleta. (…). Curiosamente, as mídias sociais não têm esse prurido. Vídeos curtos de números sendo performados e logo desvelados correm pela internet.”

Harada em 2012 já nos alertava do perigo de uma arte que, por depender do segredo, corre o risco de se fechar “em si mesma promovendo um fenômeno singular no campo das artes performativas.”². O que equivale dizer que, como os mágicos entendem a riqueza de um segredo complexo no qual o público não-mágico não pode entender, a mágica se fecha em círculos de competições e congressos caminhando para o fim da “mágica para mágicos”. Ambos estão certos. Alê problematiza a ideia contemporânea da revelação atuando na esteira de uma contradição que vai de um ideal cuja arte deve ser livre, ao mesmo tempo que na mágica o segredo é essencial e, portanto, fechado. Como conciliar?

Ambos apontam para um mesmo problema, o risco da mágica se fechar em si mesma. Concordo com Alê, a arte deve ser livre, mas a mágica depende da dimensão do segredo, contradição dada, algumas discussões se abrem. Alê critica os vídeos curtos que mostram o segredo sem ensiná-los, superficializando a dimensão do invisível que compõe a mágica. É uma espécie de vírus que diz “isso aqui é banal, é assim que se faz”, atrapalhando a arte, não por revelar, mas sim por banalizar sua riqueza. A mensagem que fica é a de que “mágica é fácil, não é preciso muito para fazer”. Para aprofundar a discussão, quero agora entrar em outro campo que Alê não entra, um outro formato: mágica ensinada em vídeos mais longos no youtube. 

A plataforma que permite vídeos longos é menos banalizadora do que reels ou shorts, naturalmente. Não é incomum, entre pessoas brasileiras e não brasileiras, o discurso de que começou a revelar para aumentar o acesso à mágica, portanto, democratizá-la. Discurso que é ao mesmo tempo verdadeiro e falso. Verdadeiro, porque de fato o youtube é gratuito, os vídeos longos são acessados apenas por quem quiser, portanto, garantem o acesso ao ensino de mágica gratuito, contribuindo para o ideal – defendido por mim e por Alê Primo – de que a arte tem de ser livre. Falso, porque o discurso é problemático em muitas instâncias. Primeiro que a democratização não atua nos interesses de grandes empresas, no caso a google. Segundo porque o algoritmo exige certas demandas estratégicas que atuam diretamente para a banalização da arte e, portanto, contra a classe mágica. Ou seja, não é democrático se atua contra a classe da qual a mesma pessoa que ensina pertence. Dentre as estratégias algorítmicas, uma das principais é o clickbait, que consiste em um título ou thumb chamativos para atrair cliques. Sendo assim, títulos como “Aprenda essa mágica fácil para parecer um profissional” são comuns. A linguagem, ao contrário do que muitos pensam e apesar de limitada, tem um poder enorme, o que equivale dizer que esse tipo de discurso é tão balizador quanto vídeos curtos, chama atenção os signos “fácil” e “profissional” que descartam a verdade sobre o assunto: horas de treino e preparação, inúmeros testes. Ser profissional não é fácil, fazer mágica também não. O discurso atua na esteira da superficialidade da mágica e aquilo que se justifica como democrático acaba tendo o efeito oposto, demonstrando também a mentira – consciente ou inconsciente – daqueles que revelam no youtube. Ou seja, não fazem pela mágica e pela democratização desta, mas sim por eles mesmos, na fissura pelo clique e monetização. Nesse sentido, atuam nos interesses da grande empresa, cedendo ao algoritmo, o que não democratiza a mágica, do contrário, banaliza, desprofissionaliza e a joga mais fundo no mundo marginalizado de arte secundária da qual ela já vive. Outro fator que vale a reflexão é a propriedade intelectual. É inegável que o mercado da mágica é composto por pessoas que vivem de ensinar suas invenções, que não raramente caem nas mãos de outro no youtube sem nem mesmo os devidos créditos. Tal perspectiva é importante de se ter em mente, ninguém pode reclamar de alguém que revela as próprias invenções no youtube, mas normalmente não é o que acontece. Se essas pessoas fossem de fato condizentes com o discurso da democratização, estariam ensinando mágicas de livros antigos – em domínio público – e as próprias invenções, mas geralmente não é assim.

Mas a mágica, além do segredo, depende de todo um aparato teórico para enriquecê-la, o que provavelmente é o motivo pelo qual ela sobrevive mesmo com revelações em massa. Por meio de sutilezas e aparatos teóricos mesmo um mágico pode ser enganado com um segredo que ele já conhece, o que leva Alê a concluir que “Apesar de todos os desafios, as artes mágicas farão como Houdini e conseguirão se libertar de todas as amarras para deleite do público agradecido”, visão demasiada otimista na minha opinião, confesso, mas como ela, me resta também acreditar nisso, ou não estaria aqui escrevendo em prol da arte mágica.

Também não é só na revelação do segredo que esse discurso problemático vive. Esses dias vi um mágico qualquer – que não vale nem citar o nome – começar um vídeo no instagram com “a mágica brasileira está morrendo”. Depois ele usava o bait de que iria revelar no youtube, mas antes dos mágicos xingarem ele, ele ensinaria só teoria, como se apresentar bem, como vender etc. Veja bem, novamente o discurso heróico de eu vou salvar a mágica que está morrendo no país ajudando a trazer novos adeptos – ele também dizia que não há mágicos da nova geração. Mas novamente, cai nos interesses das grandes empresas e cede aos baits exigidos pelo algoritmo. Não sei se esse mágico qualquer atua na desonestidade ou na cegueira, sei que a mágica brasileira teve três grandes prêmios nos dois últimos campeonatos latino-americanos e um primeiro lugar na categoria de magia geral, além de dois finalistas na categoria de Mágica de Rua no FISM, estando longe de morrer. Sei também que o Festival Internacional SESC de Circo apresentou performances bem acima da média de muitos outros países, fato que demonstra que não está morrendo. Sei também que o SESC Sorocaba tem sido palco de uma vanguarda potente na mágica, demonstrando que a mágica brasileira está na verdade nascendo. Essas pessoas buscam uma espécie de sucesso de subcelebridade, o interesse verdadeiro não é a mágica, mas sim o autosucesso e a autopromoção. Os reveladores caem – de modo consciente ou não – no algoritmo, sendo obrigados a cederem aos interesses de grandes empresas e não da arte, menos ainda da democratização.

Mas e a solução? Alê nos dá de forma magistral:

“Como educadora, só posso pensar em como as práticas educativas podem promover a formação de novos artistas e o crescimento da mágica. Veja-se por exemplo a Coreia do Sul, que não tinha maior tradição em artes mágicas. Hoje, com cursos formais voltados para o aprendizado de mágica, os coreanos estão entre os melhores mágicos do mundo, especialmente no que toca à manipulação.

Tenho várias críticas ao estilo coreano de que Alê fala acima, mas o diagnóstico é certo. Uma prática educativa, não só na internet, é o caminho mais certeiro. Veja a escola espanhola, que revolucionou a cartomagia e a teoria da arte influenciando o mundo inteiro. E como fala Alê, a própria Coreia do Sul, é inegável que eles lançaram uma tendência na mágica, inclusive com as competições sendo dominadas por um estilo de mágica visual amplamente desenvolvido por eles. Já disse algo parecido antes no artigo “O Colonialismo Ilusionista: Por que a mágica Brasileira ainda é Importada?”: “Faz-se necessário uma escola” brasileira de mágica, física ou não, mas autóctone, com uma identidade e estilo próprios, algo que se veja e se possa dizer “esse é o estilo brasileiro de mágica”, tal qual a Coreia do Sul e a Espanha.

1: HARADA, Ricardo Godoy. A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral = Attempting the impossible : the art of conjuring as poetic material of the theatrical scene. 2012.  p. 110 Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1618657. Acesso em: 20 abr. 2025. Grifos nossos.

2: IBID, p. 84

3: Todos os trechos citados de Alê Primo são do texto “O Segredo da Ilusão e a Ilusão do Segredo, publicado no livro catálogo do Festival Internacional SESC de Circo, 2025, p. 12-16. O texto foi parcialmente publicado em: https://www.sescsp.org.br/editorial/o-segredo-da-ilusao-e-a-ilusao-do-segredo, mas diversos trechos que citei tem apenas na versão física que peguei pessoalmente no festival. Provavelmente o catálogo será publicado completo em: https://sesc.digital/colecao/catalogos-circos-festival-sesc-de-circo, mas por enquanto só tem as edições mais antigas.

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