Crítica

TEATRO E MÁGICA EM COMUNHÃO EM “A MAÇÔ

Ricardo Harada, teórico do ilusionismo brasileiro, descreve em seu livro “A Tentativa do Impossível” uma certa incompatibilidade entre o teatro e a mágica. À medida que o teatro precisa da verossimilhança para acontecer – o espectador precisa acreditar naquilo que vê em cena – a mágica é quase o oposto disso. A verdade e o estado natural das coisas são subvertidos em cena e o público passa a acreditar em coisas que seriam impossíveis no mundo real.

Esse preâmbulo é necessário para começar a falar do espetáculo “A Maçã”, do ilusionista paulistano William Seven, pois vemos em cena uma obra teatral se valer da mágica como elemento narrativo e continuar sendo tanto teatro quanto mágica, numa espécie de coexistência pacífica entre as duas linguagens.

Mas o hibridismo de “A Maçã” não para por aí, se evidencia também pela mistura de dois gêneros teatrais antagônicos, o dramático e o épico. Enquanto no gênero dramático o teatro seria somente para entreter, no épico, a função do teatro é gerar reflexão. A Maçã, faz isso quando coloca luz no Alzheimer, sob uma perspectiva pouco vista, a de quem sofre dessa doença degenerativa. Através das repetições que acontecem em cena, o espectador é levado a experimentar, com junto com o personagem, como é a sensação de desconforto e solidão de quem é acometido por essa doença.

A mágica, inserida na narrativa de “A Maçã”, funciona portanto, como elemento de distanciamento e corta a catarse do espectador, mostrando que aquilo que se vê é uma encenação, assim como Bertolt Brecht, fazia quando concebeu o teatro épico.

Reprodução

O espetáculo nasce da fusão entre o desejo de William de apresentar um ato de closeup (mágica de perto) de 8 minutos, no congresso da Federação Latino Americana das Sociedades Mágicas, em 2018 e a pesquisa da neurocientista Salma Hernandez, que estudou Alzheimer por 15 anos. O ato – como são chamadas as esquetes de mágica – foi premiado com o Grand Prix da competição daquele ano e posteriormente ampliado para a versão de 60 minutos que podemos ver agora no teatro Sesc Copacabana.

Usando a maçã como símbolo e metáfora para a doença retratada em cena, Seven começa com a execução primorosa do ato premiado, que envolve o clássico da mágica “cups and Balls” (copos e bolas), fazendo aparecer e desaparecer bolas que se transformam na fruta, assombrando a plateia e mostrando também o assombro de Nicolau Souberdes, o personagem da história, com sua condição mental. 

No monólogo, o protagonista, que é um mágico decadente, vai revirando gavetas, com a sensação de que estão mexendo em suas coisas e tomando consciência de sua condição, à medida que as mágicas vão acontecendo e se repetindo.

A quebra da quarta parede, recurso narrativo frequentemente usado no teatro épico, é substituída pelo incomum “emparedamento” do espectador, que é convidado por Nicolau para a cena e participa da história através de um número de mágica que dá tão certo quanto errado para ele. As cartas do baralho ficam todas brancas, o que parece uma versão adaptada do “Blizzard”, e a carta escolhida e assinada pelo espectador surge dentro da caixa do baralho, para surpresa de todos.

Reprodução

Nesse momento o protagonista tem uma espécie de surto e começa a misturar lembranças com a realidade e mostra sua desorientação temporal. Depois, toma consciência do ano que está, através de um jornal do dia, que é rasgado, mas no final reaparece intacto, como se o dia não tivesse acontecido, ou sido esquecido.

Dessa forma, as mágicas acontecem para ilustrar o texto do personagem, que tem a repetição como forma de expressão de sua condição, num equilíbrio perfeito entre trazer o espectador para o encantamento da encenação, e distanciar nos momentos em que é necessária a reflexão ou identificação; Tarefa que é concluída com êxito quando percebemos fungados e choros contidos na plateia.

Com tudo isso, a peça ainda carece de direção cênica e de um final arrebatador, que talvez conseguisse ser obtido com a apresentação do ato na mesa, não no começo, mas sim no fim, ou simplesmente com  o deslocamento para o início do espetáculo da cena do caderno de lembranças, que termina com a produção de uma maçã a partir de um desenho de uma folha arrancada, trazendo humor e leveza num momento que deveria ser de tensão crescente, o que contribui para a falta de clímax.

Ao contrário, a cena do coelho da cartola é niilista e sarcástica na medida certa e promove um alívio cômico, de mesma forma acertado, onde está.

Reprodução

Acertado também é o trabalho de ator do ilusionista. William Seven constroi corpo e voz peculiares que imprimem nunces ao personagem e dão a fé cênica esperada no gênero dramático.

A trilha sonora ajuda na imersão do público na história, mas a iluminação sofre com adaptação para um espaço multiuso e a falta de textura, conseguida com a fumaça, por exemplo. Uma atenção ao cenário também é desejável, já que alguns objetos cênicos são simplesmente deixados no chão, o que além de deixar a cena suja, obriga o ator a abaixar mais do que deveria, sem fazer uso cênico do plano baixo, o que empobrece a montagem.

“A Maçã” é portanto, ao mesmo tempo, um monólogo teatral muito bom, com ilusionismo incidental e um espetáculo de boa mágica, com narrativa dramática. A temporada carioca da peça mostra que a mágica tem sim musculatura para levar o público de quinta a domingo ao teatro, durante um mês, e pode ser apreciada como obra de arte, assim como qualquer espetáculo teatral. Merece demais sua atenção.

Você também pode gostar...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *