Crítica

Autocrítica: Clube da Mágica Clandestina Tem Estreia Com Falhas, Aprendizados e Potência

No dia 02 de novembro aconteceu o show “Clube da Mágica Clandestina” no Acústico Comedy, com elenco composto por mim (Gui Antonio), Everton Machado, Guilherme Gomieri, Célio Amino e João Biolchi, este assinando produção e direção da apresentação. Tratava-se de um show de variedades, espécie de cabaré, onde cada convidado apresentou entre sete e dez minutos, enquanto João Biolchi e Everton Machado faziam os mestres de cerimônia.

Reprodução da internet

Embora anunciado no começo que a dupla de Mato Grosso do Sul fariam os intermédios entre atos, isso não se realizou, ficando a cargo apenas de Biolchi, demonstrando claramente a falta de organização. A contrarregragem também foi aos tropeços, deixando evidente a falta de pensamento estrutural para um show do tipo, embora em geral Biolchi conseguia evitar as barrigas com piadas aparentemente improvisadas. Gomieri e Biolchi apostaram em números de cartomagia que falharam na verticalização. O espaço não foi pensado para mágica, com uma plateia assimétrica composta por pessoas majoritariamente na lateral e na diagonal, coisa que dificulta muito a performance de um mágico. Além disso, alguns lugares ficavam cercados por colunas. Sendo assim, apesar de no ensaio havermos pensado nas verticalizações nos termos de Eugene Burger e Roberto Giobbi, o recurso visivelmente não funcionou para o espaço. Expor o ensaio aqui, recurso que normalmente não posso recorrer em críticas de shows de terceiros, não se trata de justificativa, pelo contrário, ao vermos o espaço, a nossa obrigação como artista era estar mais presente cenicamente e entender como mostrar o que estava acontecendo. 

Quanto aos figurinos, Biolchi apostou em um chapéu-coco, camisa vermelha, suspensório, calça básica e blazer preto. Everton estava parecido, trocando o blazer por um colete, também preto. Como a proposta era os dois apresentarem, a ideia de estarem parecidos pareceu ser a única proposta, embora os figurinos não compuseram em nada as personas de ambos. Ainda sim, ter alguma proposta, ainda que seja algo mais ou menos próximo de um mágico clássico, é melhor que não ter, como Célio Amino e Gomieri que apostaram no básico preto. Eu estava de cartola, cachecol vermelho, paletó marrom e sapato bicolor, compondo o mais próximo possível de um mágico clássico. O figurino também não dialoga em nada com minha persona, recorri a ele porque gera algum impacto no público e, como disse, alguma proposta é melhor do que nenhuma. Já critiquei exatamente o estilo de figurino que eu estava usando no artigo Diálogos sobre a vestimenta: uma perspectiva marxista sobre os símbolos da mágica. Não tenho justificativas plausíveis para optar por esse tipo de figurino, exceto o fato de que funciona para o público e eu ainda não consegui superar artisticamente com alguma proposta que combine com a minha performance. Teoria e prática devem se alinhar, mas a minha pesquisa no âmbito teórico é muito mais veloz que no âmbito prático. Em síntese, o figurino era ruim pelos mesmos motivos que analisei no artigo citado acima.

O show teve abertura de João Biolchi e Everton Machado, mas o improviso ficou muito visível com diversas piadas que não entraram, embora terminaram o ato com uma three-card monte, número no qual o espectador sempre erra onde está uma carta diferente entre outras duas  iguais. O número foi potente, sobretudo no clímax final, funcionando bem, mas não teve grandes novidades. 

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A segunda entrada foi minha, com um número onde dobro um origami de ave, rasgando a cabeça e restaurando. A performance é um poema que eu mesmo compus baseado em literatura de cordel, sempre rimando, sobre a história de Dedi, supostamente o primeiro registro sobre mágica que já foi escrito. É um número de David Parr. Eu entrei da plateia, por ideia do diretor e produtor do show. Funcionou bem a ideia da entrada de um lugar diferente, mas o número, por ser muito curto, ficou solto. Analisando isoladamente, recebi muitos elogios ao texto, mas um dos feedbacks que me deram apontou a desproporcionalidade entre o texto e o efeito mágico, sendo o segundo mais fraco que o primeiro. É verdade, o número é mais texto que mágica.

Depois da minha entrada, foi a vez de Célio Amino, que apresentou um trecho de sua performance já longamente desenvolvida: Wakatta. É um espetáculo cômico inteiro em japonês feito, justamente, para quem não entende a língua. Como wakatta, que significa entendi em japonês, já vem sendo trabalhado há bastante tempo, além dos longos anos de experiência de Célio, foi um dos pontos altos da noite. A escolha de troca de figurino, normalmente algo que remete ao Japão, mas no dia um básico preto, perdeu artisticamente do ponto de vista estético, porém em potência foi, provavelmente, o mais forte da noite.

A entrada de Gomieri contou com um número de corda, na qual ela é cortada, restaurada, suas pontas são retiradas deixando a corda circular e colocada de volta e termina com um nó que é, de forma impossível, visivelmente retirado da corda. O número é tecnicamente muito potente, mas o ritmo foi acelerado dando a impressão que a plateia não o acompanhou em alguns momentos. O mágico começou com uma piada, mostrando uma caixa de baralho e dizendo que foi divulgado como o rei do baralho, mas depois tirava uma corda da caixinha. O timing da piada, embora recebeu dicas de Biolchi que entende bem do assunto, não foi muito certeiro e entrou pouco, com risadas tímidas. O número parece ter um problema estrutural no clímax, pois o efeito final não é tão forte quanto alguns outros que tem durante a rotina. Gomieri apostou em outro número cômico no qual uma pelúcia que dá a impressão de estar se mexendo localiza uma carta escolhida, além de outros números com o baralho. Como já dito, a verticalização não funcionou bem, o que fez com que parte do público não entendesse o que estava acontecendo. Apesar disso, houve em um dos números uma grande reação da pessoa que foi chamada no palco para ajudar e isso gerou um show por si, mas a mágica não entrou tanto para a plateia.

A minha segunda entrada contou com três números. O primeiro foi aros chineses, número no qual argolas se atravessam de diferentes maneiras. O número funcionou bem magicamente, embora o texto não estava tão afinado quantos os outros do repertório. Houve uma trava técnica no começo e algumas pessoas julgaram que fiquei nervoso, embora foi só um erro mesmo. Outras nem perceberam, acredito que porque o número compensou ao longo da rotina, uma vez que o domino bastante, já que o apresentava na rua e é, definitivamente, o número que mais fiz durante minha carreira de mágico. O segundo número foi whatsabox de Robert Neale, é um número bastante experimental no qual ainda não entendi algumas demandas, embora foi a primeira vez que tive a impressão de que ele funcionou de alguma forma. Trata-se de um efeito em que há uma caixa de papel de dois fundos e um objeto dentro que atravessa um dos fundos e se revela ser uma bola. A performance segue com um dos fundos da caixa desaparecendo e aparecendo uma abertura na caixa. Depois, a bola nunca cai no lado em que deveria cair. Por fim, a caixa volta a ter dois fundos. O número também é rimado e deveria ter sido apresentado na sequência de Dedi, que apresentei isolado na primeira entrada. Ainda há várias coisas para melhorar, definitivamente. O texto termina sem efeito e em um dos feedbacks que me deram, disseram que é estranho eu acabar falando do impossível sem nada acontecer. Ainda preciso refletir sobre o quão isso é verdade e entender qual aspecto faz com que a proposta de finalizar o número sem efeito pareça solta, mas ao meu ver, terminar com efeito não é categórico, há um erro aqui e preciso descobrir qual. Mas não me parece ser terminar sem efeito. Por fim, terminei com o fio cigano, número no qual uma linha é cortada em vários pedaços e depois restaurada. Havia um texto sobre a língua humana baseada em aspectos da linguística. Para alguns, o texto era demasiado acadêmico e hermético, para outros, foi impressionante como eu consegui deixar um assunto do tipo simples e sintético. O desacordo demonstra que número precisa de mais pesquisa, foi a estreia desse texto. Além disso, houve uma falha técnica, já havia apresentado o efeito com outro texto em duas situações e nunca tinha me ocorrido da minha mão estar seca. No dia do Clube da Mágica Clandestina, provavelmente em virtude do ar condicionado, a mão estava seca. Há um momento onde eu enrolo os pedaços de linha quebrados e ao tentar fazê-lo, a linha não enrolava, criando uma barriga. Para evitar a barriga, recorri a piadas que quebraram um pouco a ideia de um número poético ritmado, o que acabou enfraquecendo o número além de gerar um parêntesis anti-contraste¹. 

Everton Machado, depois da entrada com Biolchi no início, fez uma outra entrada onde claramente errou o número. Não soube se sair bem ao erro e só anunciou a próxima entrada. Depois disso, não teve mais nenhuma cena do artista, o que foi um erro, pois não se deu a chance de corrigir o que fez. Em um clube de comédia, a oportunidade era perfeita para se auto-depreciar com humor, mas o campeão latino-americano de mágica não apostou nisso e preferiu se silenciar. Errar é normal ao meu ver e o número era um teste, torço para ver novamente a mesma performance dando certo.

As entradas de Biolchi funcionaram bem do ponto de vista do humor, ao menos se considerar as métricas do stand up comedy, fonte da qual o artista bebe. Não se pode dizer o mesmo dos efeitos mágicos. Biolchi errou mais de uma vez na verticalização, não ficando claro para o público o que acontece enquanto mágica. Na mistura entre mágica e stand up, embora funcione bem do ponto de vista do segundo em relação ao primeiro, ambos entram em choque e nenhum funciona como deveria. O stand up enfraquece a mágica e a mágica enfraquece o stand up. Apesar disso, em geral, funciona bem para o público. Carece entender melhor como essa mistura pode se dar para que ambas as potências desejadas sejam atingidas.

Por fim, a ordem foi definitivamente errônea. Tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo. Por exemplo, eu decidi abrir com meu melhor texto. Na segunda entrada abri com meu melhor número, encerrando com uma performance de estreia que teve um entrave técnico. Gomieri escolheu abrir com os números que funcionam melhor para palco e fechar com os que funcionam pior, com erro de verticalização. No todo, deixamos Célio Amino – o que com certeza seria um tiro certeiro – em terceiro, deveríamos ter encerrado com ele. O número final de Biolchi é um número potente, mas a realidade interna é mais forte do que a realidade externa, além dos problemas de amostragem (verticalização) terem enfraquecido o número como um todo. 

O Clube da Mágica Clandestina foi um show de variedades que pretende acontecer mais vezes e essa foi uma estreia. Apesar de todos esses problemas, o público foi muito receptivo e recebemos muitos elogios, mas isso significa pouco, pois seria desonesto se dissesse que o show foi bom por isso. O critério da crítica é forma, conteúdo, estética e teoria. A desorganização do show ficou muito evidente e há muito o que melhorar, o que acredito que será feito nos próximos com outros convidados. Talvez eu mesmo retorne com essa autocrítica em mente para trabalhar melhor cada número, ordenação e tudo que aqui foi apontado. Espero com esse artigo deixar mais evidente a função da crítica e por isso a faço a mim mesmo e meus amigos.

1: Ver La Magia de Ascanio, volume 1, para a explicação do conceito. Também presente no artigo que escrevi: Artifaces faz poética do impossível brilhar, apesar de ato ruim. Decido não descrever aqui para não alongar mais o texto.

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